sábado, 14 de agosto de 2010

Ser Onívoro

Múmia de Tarim

Cemitério de Tarim


"...se o ser donde proveio o homem não fosse bípede, as suas mãos não teriam se tornado livres, de modo a liberarem as maxilas da sua função preensora, e, por consequência, não se teriam atenuado a espessa massa de músculos maxilares que limitavam o cranio. O cérebro humano pode aumentar de volume graças à bipedia, que libertou as mãos, sendo também graças a ela, que se realizou a aproximação dos olhos da face diminuída, conseguindo-se a convergência e a afixação das imagens do que as mãos apreendiam, seguravam e manejavam; desta mesma bipedia dependeu o próprio gesto, exteriorizado, da reflexão!"        (Pe. Teilhard de Chardin)     



Evolução, Raça e Cultura -

Para realizar esta pesquisa foi necessário buscar uma bibliografia que não possuísse o vício do etnocentrismo característico de alguns tratados sobre antropologia e autores com uma visão limitada por suas crenças geopolíticas particulares, o que sempre prejudica qualquer estudo para se obter uma visão clara do quadro geral e uma análise realmente crítica da humanidade enquanto espécie. No Hemisfério Norte, berço de algumas civilizações contemporâneas, esta visão crítica só encontra profundidade quando a análise se faz do “outro”, distante geograficamente em alguma tribo exótica ou nas calendas do tempo passado e se torna menos crítica à medida que os fatos transcorrem na atualidade e seus personagens são ainda atuantes. Daí a dificuldade de obter uma bibliografia mais ampla e confiável.

O arquétipo da guerra ainda ecoa por aquelas paragens na mesopotâmia e além das montanhas do Tauro. Os gritos selvagens dos povos das estepes, o conflito de atrito, guerra de desgaste, choque constante entre os povos semitas e indo-arianos em suas constantes migrações, sua amálgama, na verdade foi o que deu origem à civilização ocidental, e hoje ainda repercutem. Os tiros e golpes, as marchas incessantes ainda são ouvidos vindos das montanhas, mesmo com seus interlocutores hoje envergando tecnologias digitais e portando armas de ultima geração.


Por trás deste conflito milenar onde nações se enfrentam, o enganoso conceito racial deu lugar ao cultural e a desculpa da fé ideológica permitiu abrir novamente a caixa de pandora onde se escondia o grande deus canibal que habitava a crença de nossos antepassados, e acabou liberto em nossos tempos pelos sombrios seguidores de seu negro manto. Raça passou a representar um conceito relativo para os estudiosos, pois não é exato cientificamente, mas possui grande ressonância entre as massas incultas, idéia sempre reforçada por grupos de extremistas de ambos os lados conflitantes. Desenvolveram um mito de civilização em oposição a outro através das facilidades dos meios de comunicação de massa, agindo estas forças nefastas de forma intolerante e sectária. Ser sectário e intolerante é defeito natural do ser humano que sempre acusa o “outro”, o seu próximo, de cometer. Assim é a humanidade, no papel de ser social, sua visão é sempre sectária em relação ao vizinho, o que compromete o distanciamento crítico da maioria dos estudiosos do gênero humano, sociólogos, antropólogos e psicólogos.

A questão do mito racial hoje pode ser tratada de forma mais acurada, graças aos avanços da genética que vem destruindo os mitos da análise morfológica para classificação da espécie humana, sempre usada como desculpa para estabelecer divisões cartesianas que escondem suas semelhanças e realçam diferenças artificiais. Como destaca tão bem o estudioso: “Um grupo étnico é uma das numerosas populações que constituem a espécie única Homo Sapiens e que, individualmente, conserva suas diferenças, físicas e culturais, por meio de mecanismos isoladores, tais como barreiras geográficas ou sociais. As diferenças variarão de acordo com a resistência destas barreiras. Onde elas forem frágeis, haverá maior hibridização entre os grupos vizinhos; onde forem mais rígidos, esses grupos étnicos tenderão a permanecer distintos ou a se suceder geograficamente ou ecologicamente”. (Montagu, 1945: 43)

“Homo homini lupus”. O homem é o lobo do homem, diz a sabedoria dos antigos. Desde a pré-história até o séc. XXI, um pequeno lapso de tempo na escala evolucionária da espécie contada em milhões de anos, a marcha da conquista do homem sobre o planeta tem comprovado o ditado sobre a relação com seu próximo. O comportamento humano, sempre visceral em relação às próprias crenças e sectário,  em oposição direta aos dogmas aceitos pela ética cristã ou os preceitos do Budha de irmandade e de amor ao próximo sempre prevaleceram sobre o bom senso nas comunidades humanas. Grupos sociais, étnicos, políticos, ou religiosos diversos aos da tribo, cidade ou estado apresentam sempre uma ameaça potencial à sobrevivência da comunidade que se pretende original. Dentro do imaginário da polis, os comportamentos desumanos e belicosos, sempre são atribuídos ao “outro”. Assim os grupos estranhos, alienígenas, que diferem de alguma forma daquele que acredita deter o poder sobre o espaço invadido são tratados com desprezo, sendo menosprezadas suas características étnicas e culturais e é o indivíduo transformado em "coisa". Insuflar as massas controladas por algum poder temporal contra inimigos reais ou imaginários que possam ser tratados com desprezo, temor ou ódio possui raízes adquiridas nas origens do próprio homem em seu distante passado de luta pela sobrevivência. A sabedoria milenar nos ensina: o ser social denominado humano também é paradoxalmente sectário por natureza. 

Hoje, A HUMANIDADE em seu crescimento desordenado num espaço físico finito passou a ser a maior e verdadeira ameaça ao planeta: à sua biodiversidade, ao seu sistema de suporte de vida e à capacidade de regeneração do bioma. Enquanto isto, sob o slogan da legalidade e democracia, os estados contemporâneos manipulam o medo das massas através da “linguagem de informação”, para melhor controlar seus meios de produção e manter o controle sobre os pensamentos dos indivíduos. Devemos estudar as origens deste processo complexo para, a partir de sua análise, determinar o que aprisionou o ser humano ao conflito permanente com seu semelhante e à constante agressão ao meio ambiente como meio de vida e a partir do estudo de suas raízes antropológicas os homens transmutarem antigas idéias e tentarem com isso exorcizar seu poder destruidor.

A partir das pesquisas realizadas na atualidade, em campo, junto ao habitat dos primatas superiores ainda existentes, podemos ter uma ideia razoável, traçar uma analogia comportamental da sua complexidade social, semelhante aos primeiros hominídeos que desbravavam há 3 milhões de anos as planícies africanas, pequenos grupos parafamiliares que vagavam em busca constante de alimento e segurança contra a ameaça permanente dos predadores que coabitavam o mesmo ambiente caçando presas de fácil captura.




Para garantir a própria sobrevivência os primatas superiores tiveram que criar mecanismos de cooperação entre os integrantes dos bandos para coletar e caçar alimentos e afugentar as ameaças causadas pelos predadores que causavam vitima entre seus pares. A necessidade de cooperação e a vida grupal, portanto foram os fatores determinantes na evolução dos grandes primatas e a busca de alimentos o fator básico que deu o pontapé inicial para a escalada evolucionária.

Entre todos os primatas existentes, os chimpanzés são nossos parentes animais mais próximos. Possuem um perfil genético em mais de 98% idêntico ao do homem. O estudo do comportamento em seu habitat sugere estreitas correspondências entre suas estruturas sociais e comportamentais entre indivíduos em comparação aos comportamentos dos seres humanos e suas sociedades. Os blocos e alianças de poder hierárquico na sociedade dos Chimpanzés centralizam-se em torno de um macho adulto dominante, que os etologistas, estudiosos dos hábitos animais, chamam de Macho Alfa. Os Machos Alfas bem sucedidos são em geral indivíduos maduros e fisicamente poderosos. Possuem um caráter bem desenvolvido e um espírito de previsão de eventos e estabelecimento de estratégias. O Macho Alfa congrega seus pares, outros machos que os seguem e os apóiam em suas pretensões de poder. Tais como seus equivalentes humanos, os chimpanzés machos são os provedores e protetores das fêmeas e dos mais jovens em seus clãs. Acredita-se que os Machos Alfas entre os primatas superiores funcionam suas mentes a partir de estruturas arquetípicas semelhantes à de seus equivalentes humanos em nível ainda que mais primitivo, se podemos afirmar assim dentro de nossa restrita visão antropocêntrica.

Entre suas funções dentro do clã impõem a ordem, resolvem litígios e parecem inspirar admiração e respeito entre seus pares. Em troca, defendem suas fêmeas com grande ferocidade e caso não tenham possibilidade de evadir-se com o bando pagam com a vida pela sua defesa. As decisões sobre áreas de alimentação e de caça são tomadas por eles. Podem ser levados pelo altruísmo, mas tem primazia na escolha das fêmeas mais desejáveis. São comandantes em chefe do bando e servidores na manutenção da sobrevivência do grupo, exercendo sua liderança como os lideres de tribos primitivas humanas de caçadores coletores exerciam e exercem ainda seu poder.




Guerra entre chimpanzés –

Outro fator importante de semelhança entre os chimpanzés e humanos é seu regime alimentar. Ambas as espécies são onívoras e mantém uma dieta de vegetais, raízes, frutas e alguma proteína animal. Observando o comportamento destes primatas em pesquisas de campo muito do glamour inicial, ainda reflexo da mentalidade do “bom selvagem” que norteou os primeiros estudos realizados pelo casal Lakey em Olduvai, descobridores das ossadas de “Lucy”, tentavam adaptar suas pesquisas a uma idealização de uma Idade de Ouro pacifica sobre a vida selvagem, um tanto romântica, que de fato inexiste. Nossos parentes primatas em função da concorrência natural deles com outras espécies e seus semelhantes em busca da sobrevivência em áreas de habitat cada vez mais reduzidas possuem comportamentos ardilosos, esquivos e sanguinários como predadores que são utilizando seu complexo raciocínio e antecipação de eventos para emboscar outros primatas e matá-los para comer sua carne, tão necessária como se sabe para a evolução da espécie.


Atingir seus objetivos de caça e traçar estratégias contra indivíduos de outros clãs de chimpanzés não é anomalia de comportamento mas faz parte integrante da evolução da espécie que busca garantir seu espaço vital, e mantendo sua carga genética, assim reduzir a concorrência de outros seres nas áreas comuns de alimentação. Chimpanzés organizam grupos de caça e atacam de forma sorrateira animais da sua espécie que estejam afastados do bando do clã rival. Quando um grupo de primatas superiores - chimpanzés ou gorilas - começa a sentir falta de alimento, os machos adultos são acometidos de loucura devoradora. Eles engolem todas as bananas e frutas que restam no território do grupo e uma vez devoradas todas elas, invadem o território de seus vizinhos para se tornarem seus senhores por meio da violência. O canibalismo neste caso não é exceção entre estes primatas superiores nossos parentes evolutivos mais próximos. Pouco se sabe sobre os aspectos originais da cultura alimentar dos primitivos hominídeos, mas a partir dos mitos oriundos da antiguidade podemos refletir que tais hábitos não estavam de todo excluídos em uma realidade nada poética de competição alimentar entre grupos concorrentes. Nos mitemas que chegaram até nós, base ideológica do surgimento de várias civilizações, o dilaceramento do deus que encontramos nos mitos de Osíris, Orfeu, Dionisio, e Jesus, os atos propiciatórios dedicados às deusas lunares como Cibele, Ishtar e Ísis ecoam de um passado de trevas do inconsciente coletivo da humanidade das comunidades pré-agrícolas. Sacrifícios humanos eram realizados conforme os registros históricos dos costumes religiosos nas sociedades agrícolas e pastoris, para satisfazer a fome dos deuses e aplacar a voracidade da natureza

Da mesma forma, como diz o conhecido escritor norte americano Russell Banks: "os humanos agem, tornando-se consumidores enlouquecidos como compensação da agressão sofrida". Banks se referia aos acontecimentos do 11 de setembro de 2001, os atentados contra o World Trade Center. "Mergulhados nessa tendência consumista enlouquecida, o Pentágono e os donos do poder político não assinalaram um caminho alternativo: fizeram propostas consumistas. Ao invés de reorganizarem a economia nacional de seu país, para torná-la independente do petróleo do Oriente Médio através do desenvolvimento de tecnologias alternativas, lançaram um novo veículo utilitário 4X4 para lazer e transporte de tropas de alto consumo de combustível fóssil e planejaram uma invasão no Iraque para garantir sua função". Diz Banks: “Nós, seres humanos, somos uma variedade de primatas superiores, e nosso grau de evolução não nos impede de ter um acesso de loucura devoradora. Pelo contrário, a única diferença entre os chimpanzés e nós é que inventamos uma teologia para justificá-la.”

Perdido no passado dos tempos este cotidiano impreciso de busca pelo sustento ocupava inteiramente a mente do homem primitivo que ia buscar na essência vital dos outros seres da natureza seu alento e o da sua tribo, um pouco de conforto e segurança, convivendo nas planícies escaldantes com os devoradores mais poderosos sempre a espreita para empreenderem seu ataque mortal.

O predador mais poderoso possuía para o homem as qualidades ideais de força e magia que ele gostaria de incorporar como atributo facilitador da sobrevivência de sua tribo e quando recriava sua forma ao gravar sua imagem nas paredes das cavernas fica evidente sua admiração mística destas qualidades que ele pretendia dominar de forma mágica através de sua representação pictórica. Ao pretender ludibriar ou vencer o predador, transformando caçador em caça, e ingerir sua essência vital fazia do homem primitivo detentor do espírito ou manes, absorvendo sua força, agilidade e vitalidade que passavam a fazer parte da tribo que subjugou a presa. O totem tribal passa a integrar estas qualidades pela absorção de sua essência vital.

Enquanto tentavam a caça dos grandes herbívoros para saciar as fomes da tribo, em seu imaginário de caçador, na luta contra outros predadores assegurava a proteção dos seus e reduzia a concorrência no meio ambiente hostil. Assim ao matar o predador incorporava seu espírito como holocausto para seu grupo de caça adquirindo suas qualidades fundamentais como um ritual de passagem de presa a predador e prenuncio de uma fé baseada na magia e encantamento, origem ancestral de todas as religiões. Desta forma o homem se posicionava perante a natureza sempre ameaçadora criando um sistema de crenças baseado na alimentação. Sistemas de crença servem para apaziguar o interior dos homens perante a incompreensão de uma natureza que para ele funcionava de forma ininteligível e ameaçadora. O alimento, dádiva da protodivindade, quando farto acalentava o homem e dava energia para prosseguir sua jornada afastando as sombras da alma.






Canibalismo entre os Bonobos -


Os bonobos conhecidos como "chimpanzés pigmeus" ou "gráceis" apresentam uma origem comum na evolução com os chimpanzés e os humanos com uma matriz genética em quase 97% similar com as outras duas espécies de primatas. São considerados pacatos e menos agressivos em relação aos seus outros dois ramos primatas mais próximos e o comando dos bandos é exercido por uma fêmea alfa ao contrário dos chimpanzés sempre liderados pelo macho mais forte. Possuem semelhança com os humanos em relação à sexualidade irreprimida, que está sempre presente, e possuem comportamento sexual conhecidamente promíscuo.


Em recente observação de um grupo deles vivendo no seu habitat natural na África, pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia, conforme foi recentemente noticiado no "American Journal of Primatology", flagraram um comportamento nunca antes registrado. Uma fêmea foi observada comendo seu filhote de dois anos e meio que havia morrido um pouco antes. Esse comportamento só havia sido observado antes pelos estudiosos da vida animal entre os orangotangos de Bornéu.


Os bonobos eram vistos como menos violentos com seus pares próximos. Acreditava-se que não cometiam infanticídio, ou caçavam e comiam outras espécies de primatas. Em 2010 essa ideia foi  modificada quando os pesquisadores descobriram que eles matam e comem outros macacos. E agora tiveram oportunidade de presenciar a cena de uma fêmea junto com outros do mesmo bando devorando seu filhote já morto. Pelas árvores eles observaram uma fêmea chamada Olga carregando o filhote morto nos ombros. No dia seguinte ela continuava a carregar o corpo e o acariciava. Depois de uma hora, Marta, uma fêmea dominante pegou o corpo apesar de uma resistência inicial de Olga. Ela então começou a devorá-lo em conjunto com a comunidade, inclusive a mãe. Segundo o pesquisador o banquete durou horas e a carcaça mudou de mão várias vezes. Houve momentos que Olga e Ophelia, um filhote do bando, mantiveram distância do grupo. Quando sobraram alguns despojos, um único pé e mão ligados a um fragmento de pele, Olga pegou os restos e colocou-os sobre as costas se distanciando do grupo.


Os pesquisadores afirmaram que tais comportamentos podem ser normais entre essa espécie mas  não haviam sido registrados antes por outros observadores humanos por temerem justamente a óbvia analogia com comportamentos similares de grupos humanos em rituais de luto onde o endocanibalismo é costume. Para evitar polemicas os estudiosos afirmaram que tais hábitos tinham intenção puramente nutricional. Será verdadeira essa afirmação? Ou estamos nos deparando com um proto-ritual de luto ainda em sua fase embrionária de desenvolvimento onde a nutrição e a absorção do filhote se confundem no apelo instintivo grupal de extravasamento de emoções?  




SER ONÍVORO –





O ser humano em sua totalidade adquiriu características particulares que o faz diferente de outros mamíferos. Sua sexualidade se manifesta e pode ocorrer em qualquer estação favorecendo a procriação da espécie e a neotenia do filhote é longa em relação ao tempo de amadurecimento dos outros animais obrigando a existência de grupos familiares estáveis visando ao sucesso da formação da cria em sua complexidade ontológica. Seu regime alimentar é variado, podendo processar quase todo o tipo de alimentos e principalmente absorver energia de qualquer tipo de proteína animal e quase todo o tipo de proteína vegetal existente no seu meio ambiente planetário, uma das condições preponderantes do seu sucesso como espécie. Nos quatro quadrantes do planeta sua presença é inequívoca, o que demonstra sua capacidade de aclimatização em qualquer ambiente, outro fator que favoreceu sua vitória sobre as demais espécies.





São essas características particulares, dizem os estudiosos, que influenciaram o desenvolvimento de seu cérebro, sua forma de pensar o seu meio e sua relação com o ambiente. São estes fatores que influenciaram sua cultura, palavra cunhada pelos descendentes europeus dos povos indo-arianos que pode ser lida como formato do pensamento de uma sociedade ou seu regime de cultivo particular, para criar e desenvolver suas instituições e afirmar de forma instintual, como seu consciente particular encara os desafios da existência no seu cotidiano e absorve o mundo externo como alimento nutriz.

Este comportamento alimentar forjado por milhões de anos de evolução influenciou suas escolhas e foi responsável pelas grandes migrações que resultaram na ocupação humana do planeta. Somente um mamífero atingiu esta evolução da dieta alimentar em tempo tão rápido, de supercarnívoro para onívoro total: o homem.






Certos povos pigmeus aborígenes têm até hoje uma dieta de tubérculos, raízes, frutas e sementes, nozes e legumes, mel, cogumelos, besouros e larvas, bem como carne. Os hominídeos com certeza adotaram dieta mista similar, porém alimentos vegetais e insetos não deixam vestígios. A presença de ossos e conchas, entretanto, fornece uma boa pista dos hábitos desses primeiros caçadores. Eles usavam os ossos dos membros dos antílopes como instrumentos e com estas clavas primitivas espancavam suas presas até a morte. Não podemos precisar se todas as ossadas encontradas nas cavernas foram por eles mortos, mas formaram o hábito especial de regressarem com cabeças das quais extraíam e comiam os cérebros. Tinham também o costume de estilhaçar ossos grandes para retirar o tutano rico em proteínas.

O costume de alimentar-se com carne serviu para acelerar o desenvolvimento dos hominídeos. Seguindo as manadas de herbívoros foram se tornando cada vez menos sedentários e aumentaram seu raio de ação entrando necessariamente em contato com outros bandos analogamente ocupados com a mesma ocupação. Por vezes lutaram, muitas vezes se entredevoraram, porém em outras ocasiões misturavam-se e trocavam idéias. Essa socialização complexa que possui ainda seus elementos ritualizados entre os povos das estepes e entre os ameríndios também deu ímpeto a evolução da espécie.

Apesar de obscurecidos pelo tempo e da dificuldade de construir um quadro completo com vestígios tão escassos, podemos presumir que após dar seus primeiros passos como carnívoro na África, o homem prosseguiu rapidamente até aprender novos truques e tecnologias em outras regiões. Com alguma certeza sabe-se que, há meio milhão de anos, um ferramenteiro destroçava o cervo e acumulava grandes pilhas de ossos nas cavernas da Ásia Oriental. Era o chamado Homem de Pequim.

Ele pode ser chamado de homem por diversos motivos. Um deles é que fabricava ferramentas e utensílios de pedra. Existem indícios claros da confecção de machadinhas rudes e instrumentos achados nas cavernas, construíram suas lareiras e já dominavam o fogo. Os achados fósseis incluem também crânios de seus semelhantes, com as caixas cranianas totalmente partidas desde a base, com razoável perícia. Parece provável que os crânios e os corpos desaparecidos foram devorados. Comidos pelo próprio Homem de Pequim, porque não há vestígio de qualquer animal que tivesse a mesma capacidade de manipulação tão precisa.  Todos os crânios tinham o occipital aberto de modo a se poder introduzir a mão no seu interior e extrair o cérebro; a maioria dos  ossos tubulares davam a impressão de terem sido fendidos para lhes chuparem a medula. Portanto, meio milhão de anos atrás, já existia um homem na Ásia fazedor de ferramentas, canibal  caçador de cabeças, e utilizador do fogo, elemento que tornou-se fundamental para sua sobrevivência, já que seu uso foi acompanhado por quatro períodos de intensa glaciação.  

Há 50 mil anos viviam no hoje chamado continente europeu um homem com mandíbulas pesadas e protuberantes, sobrancelhas cerradas e um cérebro grande. O Homem de Neanderthal, que buscou abrigo contra o frio nas cavernas, usou bastante o fogo e manufaturou certa variedade de instrumentos. Ele tinha razoável destreza com as mãos, sendo destro e fabricou ferramentas para fazer roupas com peles de suas presas e lanças de madeira com as pontas endurecidas pelo fogo que eram utilizadas na caça.


homem neanderthal
Como seus antepassados, os neanderthalenses eram nômades. Seguiam as grandes manadas de herbívoros, caçando dentro do possível e servindo de carniceiros para o tigre dente-de-sabre, como fazem os chacais. Sua necessidade de carne sangrenta e o tempo frio que dificultava o ingresso de luz solar criaram nesses indivíduos deficiências de vitaminas C e D. Seus ossos demonstram traços de raquitismo, fraqueza dentária e reumatismo, conseqüência direta de deficiências alimentares e uma vida violentamente rude. Como resultado, os homens tinham dificuldades em conseguir alimentos e as mulheres possuíam uma estrutura óssea frágil e grande dificuldade no sucesso do parto contribuindo para um alto índice de mortalidade infantil.


Como já vimos o Homem de Pequim ou Sinantropo, já havia capturado o fogo por volta de 400.000 a. C., e era canibal; também o era o Homem de Neandertal conforme as evidências descobertas pelos estudiosos dos  crânios achados abertos de forma intencional nas cavernas. Mas em Java também foi encontrada uma série de tais crânios entre os restos do Homem de Solo (Ngandong), o contemporâneo oriental do Neandertal, e esses despojos foram abertos com a mesma técnica que os crânios de caçadores de cabeça do Bornéu, milhares de anos depois. Portanto pode-se imaginar que o Homem de Neandertal e o de Solo podem ter praticado um ritual antropofágico ancestral similar da caça de cabeças, que deve retroceder ao passado mais remoto do Plesiantropo, que matava e decapitava tanto homens como animais. Esse culto sinistro poderia ser proposto como o primeiro ritual religioso da espécie humana.

Joseph Campbell teorizando com base nessas evidências explica: “poder-se-ia sugerir, hipoteticamente, que o culto do sacrifício animal com sua representação da ‘vida além da morte e uma agradável viagem para casa’, já tinha iniciado sua prodigiosa carreira”. A força psicológica de tal representação, como os estudiosos imaginam, está relacionada à fórmula: “Tudo o que é morto transforma-se em pai”. A veneração do animal-alimento, de acordo com esse sistema, é simplesmente inevitável numa comunidade de caçadores, explica Campbell, desde que seus componentes sejam homens e não outros carniceiros predadores. Que o Plesiantropo era uma espécie de homem é indicado pelo uso de uma ferramenta especializada para abrir a cabeça de sua vítima, uma clava, e não com suas garras e dentes.

Esses crânios foram abertos com uma técnica similar entre o Neandertal, o Homem de Solo, e o caçador de cabeças de Bornéu, tendo eles usado seu arcabouços como tigelas para comer seus próprios conteúdos e por isso foram abertos da mesma maneira. Outro fator que chama a atenção é que o Sinantropo (400.000 a.C. ) e o Neandertal (200.000 a. C. ) comiam suas refeições de cérebros e carne fresca, fossem de humanos ou de animais, absolutamente crus apesar de conhecerem o fogo. Pois só quando raças posteriores surgiram ( 30.000 a 10.000 a. C.) que a arte de assar foi inventada.


Quando o ultimo período glacial chegou ao fim, há 20 mil anos, os Neanderthal se achavam já a beira da extinção. O impulso final para sua extinção no planeta foi outro grupo humano, uma raça nova de gente que chegou em bandos do leste para impor sua presença. Esses invasores eram superiores em tudo. Sabiam mais, falavam entre si e competiam caçando os mesmos alimentos com métodos aperfeiçoados e maior sucesso. Sua superioridade baseava-se em inteligência progressiva, capacidade de aprendizado superior e tecnologia mais adiantada, porém, acima de tudo, mantinham uma dieta aperfeiçoada. Eram ainda caçadores, e seu sucesso lhes permitiu ter tempo para instituir outros métodos vencedores de caça e coleta. Pescavam e caçavam com armadilhas; suas mulheres eram peritas na colheita e preparo de frutas, cereais e raízes. O círculo alimentar se completou: de isentívoro a herbívoro, a supercarnívoro, e de volta a herbívoro e insetívoro. O comedor em franca ascensão entre os primatas superiores a fechar o círculo na escala alimentar, tornando-se o primeiro onívoro total, foi o Homem de Cro-Magnon. Suas origens ainda permanecem obscuras; os estudiosos sabem que vieram de algum ponto da Ásia Central e foi o primeiro homem primitivo a ser chamado de Homo Sapiens.


Uma recente descoberta, em uma caverna do condado de Somerset indica que os primitivos habitantes das ilhas britânicas bebiam dos crânios de suas vítimas. Cientistas do Museu de História Natural de Londres analisaram os restos de três pessoas achados em uma caverna em Cheddar Gorge, entre estes de uma criança de três anos, que supostamente foi morta por práticas de canibalismo. Os ossos mostram cortes precisos com o objetivo de extrair a máxima quantidade de carne das vítimas e os crânios pareciam uma espécie de vaso para beber.

Para os paleontólogos, os fragmentos têm 14,7 mil anos e são os exemplos mais antigos descobertos na Inglaterra, até agora, de alguidares (vasos) feitos de crânios humanos e constituem a primeira evidência de antropofagia ritual  neste país. Naquela época, os humanos já haviam aprendido a enterrar seus mortos, o que significa que os restos descobertos são com certeza resultado de práticas canibais.

"Nesse período, a vida era muito dura, comentou o professor Chris Stringer, paleontólogo que ajudou a escavar os restos e acrescentou: "O canibalismo era seguramente um bom método para eliminar grupos rivais e conseguir comida".
"O mais sinistro é que essas pessoas eram caçadoras e coletoras, muito parecidas com os seres humanos atuais. Podiam fazer ferramentas e pintavam nas cavernas. Realizavam sepultamentos complexos para as pessoas às quais não devoravam e tratavam seus mortos com reverência", acrescentou o paleontólogo.



Tigela de Crânio


Esses caçadores de mamutes e bisontes, que já exercitavam sua religiosidade e possuíam cultura similar aos ocidentais de hoje, eram sem sombra de dúvidas canibais. Suas tumbas arranjadas com tanto carinho possuem resquícios de endocanibalismo, aquele que ocorre entre os familiares, assim um membro da própria tribo tinha o cérebro devorado em ritual. Acredita-se que a honra advinha do fato do morto ser um grande caçador, feiticeiro ou artista, um herói cujos herdeiros queriam absorver as qualidades. Provavelmente a antropofagia no fim do período glaciário (assim como em épocas anteriores) pertencia aos seus usos e costumes; eles não comiam apenas os inimigos mortos, mas também em épocas propícias entregavam ao feiticeiro membros da própria tribo que eram sacrificados à proto-divindade (espírito dos mortos ou da natureza) mediante ritos solenes, sendo depois devoradas suas partes pelos demais e sepultado com todas as honras. 


Esses costumes não eram cultivados apenas pelas necessidades inerentes à luta pela sobrevivência, quer pelos Cro-Magnon quer pelos antropófagos posteriores, que temos notícia através dos relatos mais recentes dos viajantes. Relacionava-se com uma das maiores descobertas que a humanidade já fez em todos os tempos - a descoberta da alma imortal. As almas dos mortos, crêem os aborígenes na Austrália, permanecem perigosamente nas trevas e podem fazer toda a sorte de malefícios se não receberem nos rituais a atenção devida. A melhor maneira de aplacar o mal e exorcizar seus efeitos, colocando os espíritos no caminho desejado, é devorar seus corpos quando mortos.


"O devoramento por amor tem uma razão; o ser humano não quer perder suas pessoas queridas e, portanto pretende atrair para sí suas almas devorando-lhes o corpo. Até a mãe devora as carnes do próprio filho e leva consigo os ossos do ente querido bem arrumadinhos e pintados de vermelho. Aqui rege o desejo de conservar o ente querido; no devoramento do inimigo abatido representa o principal papel a transferência da sua força. Se não se pode comer o corpo todo, come-se pelo menos seu cérebro ou a gordura em volta dos rins, que curiosamente é considerada o centro das faculdades especiais". Essas idéias de consumação do devoramento para encarnar as qualidades dos mortos deu origem as principais religiões da humanidade e possui referências diretas até hoje nos cultos humanos. (Hermann Klaatsch - "A Evolução da Humanidade e os Primodios da Cultura") 


Segundo os costumes consagrados até hoje pelas tradições religiosas é na cabeça e nos rins onde se localiza a energia espiritual e procriativa do ser. Os xamãs pré-históricos identificavam a essência mágica do indivíduo nessas regiões anatômicas, seus centros de energia associados à líbido e ao logos que, de acordo com a tradição, o ser possuía enquanto vivo,  e pretendiam através do canibalismo absorver suas qualidades mágicas após seu falecimento, principalmente se fosse um grande líder, um caçador renomado, ou outro feiticeiro de onde pudessem absorver seus poderes sobrenaturais.      


    

Xamã australiano como ave  casoar


Os dentes de urso, as cabeças desse animal tratadas de forma ritual pelos indo arianos, o leão entre os africanos, e o jaguar entre os ameríndios tem valores equivalentes como animais totemicos. Todos esses predadores possuem os olhos na frente, olham para frente, como os homens, enquanto outros animais têm visão lateral. Sua visão frontal serve para afugentar os maus olhados onde foram as cabeças instaladas em altares ou pintadas suas imagens nas inscrições das cavernas e rochas pelos xamãs, seu poder solar irradiava a proteção necessária aos caçadores e sua energia era incorporada na aventura diária da sobrevivência.


O pensamento primordial religioso do homem, por herança mitogenética ou por difusão, que atravessou eras e foi transmitido entre várias raças de hominídeos por gerações, foi localizado nos mais loginquos lugares do planeta. Quando são mencionados os santuários dos ursos do Homem de Neandertal, não podemos dizer com certeza se de fato estão associados ou não aos rituais de caçadores de cabeça, mas é provável que o objetivo ritual desses fosse o mesmo que o do culto ao urso sagrado. Na gruta de cinco câmaras de Guattari, perto de San Felice Circeo, na costa da Itália, cerca de 128 Km a sudeste de Roma, um crânio neandertalense foi achado. Ele tinha sido tratado de forma semelhante à de um crânio de um urso sacrificado. A cabeça havia sido removida e furada para extrair o cérebro; restos de animais sacrificados foram preservados em receptáculos em volta da gruta e o próprio crânio, localizado no chão da caverna, estava rodeado por um círculo de pedras de configuração cerimonial. É interessante registrar que no cume do próprio monte Circeo estão as ruínas de um templo romano supostamente dedicado à Circe, a feiticeira que não só metamorfoseou os homens de Ulisses em suculentos suínos, mas também introduziu o próprio viajante pela entrada cavernosa do Reino dos Mortos. O promontório é uma referencia a essa crença originada na tradição local, acidente de natural beleza e majestade, quase cercado pelo mar, os moradores da região garantem: lá seria a lendária ilha de Circe.                      

Ulisses em sua jornada de retorno ao lar, segundo Homero, e seus sempre famintos companheiros comeram animais interditos, de propriedade dos deuses, sofrendo o castigo deles que dificultaram sua viagem ou então foram servidos seus tripulantes como comida de monstros ciclópicos que os devoravam ou sofreram metamorfose em suínos para servir na vara da feiticeira para serem banqueteados e foram por pouco salvos por Mercúrio. Enquanto isso, os pretendentes dissipavam as riquezas e os rebanhos de Ulisses em banquetes diários na sua casa em Ítaca, onde disputavam as atenções de sua fiel Penélope.

Na remota Melanésia o sacrifício humano é associado ao porco. Nos primórdios de sua criação é quase certo que o homem era a oferenda propiciada, mas com o passar do tempo o cerimonial foi modificado para que o animal substituísse a vítima humana. Em Malekula, quando o viajante para a Terra dos Mortos demonstra estar apto para ingressar na caverna ao completar o desenho do labirinto ardilosamente apagado pela perigosa guardiã, ele descobre lá dentro uma grande extensão de água, a Água da Vida, à margem da qual cresce uma árvore, onde ele sobe e dali mergulha nas águas do mar subterrâneo. Os nativos declaram que suas oferendas de porco substituíram os sacrifícios humanos; porém existia até recentemente a possibilidade de sacrificar um jovem ser humano junto com um porco do mato devidamente criado para tal fim, realizando um feito tão valioso, um ofertório para abrir seus caminhos seja no céu ou na terra. A vítima humana é geralmente um bastardo, criado e educado apenas para o sacrifício, mantido saudável e recebendo muito afeto e atenção, porém ignorando completamente a sorte que o aguarda. O menino e o precioso suíno são pintados exatamente iguais e são conduzidos junto ao dólmen, onde “subitamente os que dançam por trás do menino o agarram e, colocando em seu pescoço pintado de azul uma corda que pende da imagem do falcão que encima o dólmen, a puxam para que ele fique pendurado, e depois o oficiante com sua clava o mata com um golpe na cabeça. A vítima é então arriada e o suíno que o acompanha é também golpeado e deixado sobre o corpo do menino até morrer”. O corpo do menino é entregue aos que confeccionaram a imagem ancestral para que eles o comam, e o homem que efetuou o sacrifício assume o título de Mal-tanas, “Senhor do Mundo Subterrâneo”. “Ele comunica-se com o mundo do sobrenatural”, contam-nos. “Ele pode fazer o que desejar; pode mesmo fazer o que não deve ser feito. Nenhum homem ousa ser odiado por ele. E depois de matar, o novo Senhor do Mundo Subterrâneo permanece trinta dias sobre a plataforma de pedra, comendo apenas inhame. Seus braços são cobertos dos cotovelos aos pulsos com braceletes das mais valiosas contas de conchas e também de presas de porco. Ele é a própria imagem daquele ser imortal que a morte não atinge.

Melanésios assando um suíno
A oferenda mais poderosa é a de outro ser humano – do filho, do escravo ou do prisioneiro de guerra. Nesse campo do sacrifico humano como oferenda se insere a tradição da pena de morte ao faltoso que é sacrificado à deusa da justiça, como queriam os romanos. Mas o próximo na escala propiciatória é o animal que foi cevado com carinho pela própria pessoa que o criou e cuidou como seu. Nessa esfera o carneiro e o touro sempre estiveram na ordem como animais apropriados para o sacrifico sagrado. Os ritos sacrificatórios e touradas que ocorriam em Creta de onde foi difundido o costume para várias civilizações mediterrâneas, chegando até mesmo nos Açores onde foi deturpada para a flagelação pura e simples do animal açoitado pelas ruas até a morte é um exemplo milenar disso. Com seus chifres no formato da lua até hoje os touros  são mortos pela espada solar do hábil toureiro nas arenas sangrentas da Espanha. Em Malekula é o porco que preenche essa função sacrifical, no sentido estrito de oferenda lunar, suas presas previamente invertidas para tal fim pelo seu criador simbolizam o formato do crescente.

Muitas são as versões sobre a viagem do morto à sua terra da promissão na Melanésia. Numa dessas versões o corpo é imediatamente interceptado pelo espírito guardião, Lev-hev-hev, presenteado com a oferenda do porco para que a consuma em lugar da própria alma, e então o viajante obtém permissão para cruzar o limiar, atravessa a caverna e ressurge na costa, ao longo da qual caminha até certo lugar rochoso, bem conhecido, onde ele acende um fogo para chamar o barqueiro. Esse caronte melanésio chega em uma canoa fantasma. A alma à espera, é então transportada para o grande vulcão chamado de “A Fonte do Fogo” e ali os fantasmas dançam todas as noites e dormem durante os dias. Mas, segundo outra versão, o fogo do vulcão está espalhado por todo o caminho e o porco é colocado no túmulo para apaziguar o fogo. “O guardião”, eles dizem, “está parado no meio do caminho em chamas e então ele se precipita para a frente para nos devorar; mas ele acaba se satisfazendo com a carne do porco”.



Então o porco era considerado animal sagrado ou impuro, o que no desenrolar dos tempos do primitivismo esquecido para o florescimento da civilização de um povo dá no mesmo. Segundo o mito difundido a partir do Oriente, Adonis, jovem caçador amado por Afrodite (Astarté), foi morto por um javali. Este culto conhecido na Babilônia foi difundido da Fenícia ao Chipre e dali para a Grécia e Roma. Se sacrificavam javalis para Afrodite de Chipre em memória de Adonis. Diziam que era para vingar a deusa já que tinham perdido no passado primitivo sua conotação antropofágica, o sentido primeiro do sacrifício. Era Adonis nos seus primórdios o próprio javali sagrado, objeto do culto de um clã de mulheres que se autodenominavam javalinas para assimilar-se ao seu deus. Uma vez ao ano o javali era morto, esquartejado, e comido em comunhão, depois as mulheres "choravam" seu deus despedaçado, e passado alguns dias celebravam sua ressurreição, isto é, a substituição do simulacro sagrado por um novo animal da mesma espécie, que era, até o verão seguinte, a imagem de seu deus tutelar. O nome verdadeiro, sacralizado de Adonis era Tamuz, esposo da Ishtar babilônica,  que possuí estranha semelhança da palavra javali em turco ( domuz )

Segundo Mircea Eliade é nesse estado de cultura que se encontra a antropofagia ritual. A grande preocupação dos seus adeptos é de essência metafísica, é a reconstituição de um ato sagrado que precisa ser revivido em cada estação, abatendo e devorando os seres, sejam humanos ou simulacros,  porcos e outros animais sagrados consumidos nas festividades ou comendo os primeiros frutos das colheitas de tubérculos, come-se assim o corpo divino como uma repetição do ato canibal primordial. Sacrifícios de animais, caça de cabeças, canibalismo, são simbolicamente solidários das colheitas de tubérculos e outros alimentos de origem vegetal na maioria das civilizações. O alimento não é dádiva simples da natureza mas sim o produto de um assassínio, por que foi assim que foi concebido nos primórdios dos tempos. O canibalismo, a caça às cabeças, e os sacrifícios humanos fazem parte das permissões e interditos alimentares aceitos pelos homens a fim de assegurar o regime alimentar, a vida das plantas e o fruto de suas sobrevivências. Não é um ato natural, mas sim um processo cultural fundado sobre sua religiosidade. Para que seu universo alimentar possa se sustentar o homem deve matar e ser morto. Sua sexualidade deve também ser exacerbada até seu limite na orgia. Lembra Eliade: "Uma canção Abissínia proclama-os: Aquela que ainda não engendrou, engendre; aquele que ainda não matou, que mate! Assim as duas metades, os dois sexos ficam condenados a assumir seus destinos".         


Monan, herói cultural dos Tupis-Guarani que segundo o mito detinha poderes mágicos, também ensinou-lhes sobre os alimentos interditos relatam os etnólogos sobre seus  costumes alimentares forjados no mito e na crença. Entre outros ensinamentos ele advertia-os sobre as frutas e plantas venenosas ou más, assim como às carnes de certos animais pesados e lerdos, pois por analogia, certamente eram nocivos à saúde, de vez que os tornariam pesados e entorpecidos na caça e na guerra. Também interditos estavam os peixes pouco vivazes de mar ou de rio pelas mesmas razões. Assim eram também interditos pelas tribos, por outras crenças, como alimento, o jaguar e suas variedades e o lobo guará, pois este último exalava cheiro insuportável.         

Com a mesma intenção devocional, os povos primitivos da América do Sul, nas suas relações homem-espírito, acreditavam em entidades superiores que governam e defendem as espécies vivas. Acreditavam que almas de seus parentes estão asiladas em determinados animais e esses são intocáveis. Portanto ao praticar a antropofagia (rito do herói), a geofagia, a biofagia (ingestão de substâncias vivas), a fitofagia ou qualquer outro tipo de regime alimentar, o homem se inscrevia em relação com um cerimonial de agrado, segurança, ou respeito às fórmulas tradicionais de sua sobrevivência em um meio adverso.

Suas instituições de alimentação, baseadas em proibições, permissões e atos sagrados passam a regular para o coletivo o que é suspeito, insuspeito, benfazejo, demoníaco, aceitável ou intocável. O recipiente onde aloja a comida e a bebida não passa sem o crivo severo do pensamento mágico. Evitar nódoas de sangue na carne a ser preparada como alimento, por exemplo, é um preceito mágico. O sangue aloja o espírito que pode ao ser ingerido, causar mal a quem o ingere, dizem as tradições de vários povos.

A ingestão do alimento é um misto de sabor e profecia. O próprio começo da humanidade registrado como mito no livro sagrado entre os “civilizados” tem a maçã (o pomo) como símbolo do sexual feminino ou da tentação demoníaca. O símbolo do pecado é uma fruta, que definida como alimento dos deuses deveria ser intocável.

Contam os gregos em sua mitologia agrária que Hércules, o eterno herói, entre suas incumbências deveria roubar as três maçãs de ouro de Juno, presente precioso que a esposa de Júpiter havia recebido em suas divinas bodas e tinha-as plantado junto ao monte Atlas guardadas pelas Hespérides, três ninfas zelosas, e vigiada por um dragão de cem cabeças. Hércules utilizando de muitos estratagemas e com ajuda de Atlas atinge seu objetivo roubando as frutas por ordem de seu vingativo meio irmão que apostava no seu fracasso. Seu meio irmão o rei de Tebas Eristeu, temendo permanecer com os frutos que havia mandado roubar, por serem interditos aos humanos, devolve-os para Hércules que os oferece à deusa Minerva. A deusa temendo a vingança de Juno devolve-os por fim às Hespérides.

Da mesma maneira, entre os indígenas, certas caças merecem zelos excepcionais antes e depois de abatidas. O veado é animal-alimento, porém, há cuidados especiais com esta caça por ser, como sugerem seus mitos, considerada humana. O veado fantasma ludibria o caçador na mata, e, por isso, quando morto, deve ser carneado fora da aldeia como prevenção e seu preparo envolve várias precauções rituais posteriores ao seu abate e antes de seu consumo para afastar o perigo da assombração. Dependendo do tipo de alimento e sua carga mágica, dele pode-se servir no período diurno ou noturno, e por isso mesmo sob a influência de aspecto solar ou lunar.

No cotidiano da vida tribal, o processo mágico da estabilidade e da sobrevivência deve ser mantido e tem o seu desenvolvimento nas formas de resguardo, jejuns e reclusões, nas quais o alimento passa a ser selecionado, limitado ou proibido. Os ritos e cerimônias são antecedidos e sucedidos das mesmas restrições que podem ou não ser admitidas ao repasto do paciente. Cada tribo no decorrer das gerações estabelece, de acordo com seu habitat, regras convencionais mágicas, através do pajé que mantém contato direto com o mundo espiritual e possui pleno conhecimento do que pode ou não pode ser útil à comunidade através da tradição. Dessa forma há entendimento entre o rito a ser adotado e as prescrições alimentares conseqüentes.

Como crianças anormais quase sempre são enterradas ao nascer, as regras de resguardo asseguram de forma mágica esta normalidade dos nascituros nas parturientes e nos rituais de passagem da puberdade garantem a virilidade masculina e a fecundidade feminina. A competição fálica que mantém a procriação na tribo assim é garantida através desta seleção.

O mágico do rito da puberdade é imposto pelo pajé, tanto para a mulher como para o homem, com inclusão da seleção alimentar. A invocação dos espíritos, incluindo os dos animais mais poderosos, ritual mágico que remonta ao tempo pré-histórico lembra os cultos fálicos, com conotações mitológicas evidentes nas origens do animal-gente. O poder fálico deve ser absorvido e desenvolvido neste rito de passagem pelos púberes e retido através da hierarquização alimentar do pajé.

Entre canções e danças, associadas aos enfeites e pinturas corporais e as comidas especiais contêm a base do sucesso futuro do jovem nas suas atividades sexuais, que garantem a sobrevivência étnico-tribal e mantém o predomínio fálico do homem sobre a natureza. O indígena não age de forma consciente em busca destes efeitos, nem racionaliza seus atos, mas sim de acordo com seu sistema de crenças com recuadas origens, mantidas por tradições subconscientizadas em sua convivência social e tratadas na sua mitologia oral.

A benzedura de animais para que então sejam comidos, a repartição classificatória da caça, as partes reservadas aos espíritos benfazejos ou aos que devem ser aplacados, as festas em que os animais são louvados através de cantos, para garantir o sucesso das caçadas, os ritos de dar comida, a purificação através do vômito, a prática sexual sobre a terra, com finalidades mágicas para dar fertilidade aos roçados, além da liberdade de cópula nas áreas de plantio, os ritos solares e lunares de abundância e fecundação da terra colocam o alimento para o ser onívoro dentro das esferas sobrenaturais e cósmicas de modo a formar o ápice do sistema de crenças dos humanos não só entre as tribos sul americanas mas com presença inequívoca entre outras civilizações onde o alimento e a simbologia fálica no seu pensamento mágico exercem preponderância sobre a sua força, valentia e estímulos procriadores.

Essa busca constante ao alimento levou a humanidade ao nomadismo das grandes migrações em busca do  fruto purificador e fomentou o povoamento de todas as regiões do planeta e a vida comunitária através da divisão de tarefas a evoluir do regime de livre promiscuidade sexual ao sistema de família, metades ou clãs, e a criar num espaço muitas vezes inóspito e perigoso um sistema de segurança, de que o alimento é seu principal suporte esotérico, de origens sabidas nos antigos mistérios religiosos.


Nas várias celebrações das religiões o alimento é o suporte fundamental para sua ritualização em suas festividades devidamente absorvidas pela sociedade industrial contemporânea que promove através de seus canais de comunicação a manutenção desses dogmas alimentares visando garantir a produção em massa de alimentos e bebidas que são consumidas no geral e no particular em comemorações religiosas e profanas que impregnam nosso cotidiano de forma subliminar. As festas populares, o banquete comunal e as festas familiares possuem, desde o início dos tempos, estrutura de fundo idêntica. O vínculo se estabelece e se estreita entre seus participantes graças a alimentação e eventual troca de presentes como mensagens apaziguadoras do grupo na manifestação de um interesse e atividade comum. Esse comportamento pode ocorrer também sujeito a uma reorientação das agressões contra terceiros e a justificação subsequente da necessidade de união do grupo contra um inimigo comum que pode ser até mesmo imaginário.


Os celtas, povos de origem indo ariana que ocuparam boa parte da Europa, tinham o costume de organizar grandes banquetes públicos no que eram seguidos nesses costumes de origem tribal pelos gregos e romanos. Assim como não poderia existir um rei sem "fortuna", ele não poderia manter seu poder sem prodigalidades. Um grande líder celta denominado Ariamnès anunciou que iria alimentar durante um ano todos os gálatas que se apresentassem. Mandou construir por todos os lados no país celta, um assentamento conquistado na Ásia Menor, salas de madeira e vime, vastas o bastante para conter várias centenas de convivas. No ano anterior havia mandado fabricar grandes caldeirões de cobre, onde diariamente os cozinheiros preparavam bois, carneiros e porcos às dúzias. Servia-se vinho à vontade Os estrangeiros podiam ser convidados.  


Luern, rei dos Avernos, ofereceu também um festim público memorável, que não durou um ano, mas que superou em dimensões os banquetes do Gálata. Nenhuma sala teria sido bastante vasta para acomodar a multidão prevista. Luern mandou cercar com uma paliçada um quadrado de dois quilômetros de largo, ou seja, aproximadamente 400 hectares. Mandou que fizessem ali escavações  semelhantes a lagos secos, que foram cheias de cerveja. Se foram mantidas as tradições das grandes festas de bodas na Pequena Bretanha Interior, devem ter precisado cavar longas trincheiras para que os convivas pudessem enfiar nelas as pernas sentado-se na terra, o desaterro a frente servindo de mesa natural. Sabemos que um povo de servidores estava disposto em formação de batalha para servir as carnes que referviam em imensas panelas ou tostavam peças inteiras sobre os braseiros. Enquanto isso o rei atirava moedas de ouro aos convivas que disputavam em frenesí sua posse.


Na falta de garfos comiam com as mãos os nacos e temperavam a comida com sal, vinagre e cominho. Entre os mais abastados bebia-se o vinho vindo de Marselha, mas o mais comum era a tradicional cerveja corma. Os convivas bebiam um de cada vez na mesma taça da esquerda para a direita, sendo o sentido inverso reservado aos rituais religiosos.


Os banquetes dos celtas muitas vezes terminavam em tumultos ou batalhas campais. Um ritual que conhecemos pelas narrativas dos viajantes gregos e pelas lendas celtas era oferecer o melhor pedaço ao conviva mais bravo. Sua escolha pelo dono da casa era das mais provisórias, já que podiam se apresentar contestadores ao pleito. As batalhas a mão limpa então começavam. Como as armas estavam sempre próximas começavam os duelos que podiam se transformar em um tumulto geral, com os homens de cada tribo tomando partido do seu campeão. Não podemos deixar de esquecer que a tradição do "banquete traiçoeiro" remontava aos costumes tribais mais remotos   desse povo sendo um costume primitivo que tem suas origens no neolítico entre os povos das estepes asiáticas e é conhcecido também entre os ameríndios. Convidam seus inimigos tradicionais sobre falsas promessas e aproveitam a comemoração para instigar a luta e praticar seus crimes de vingança. Muitas vezes os druidas intercediam e criavam provas para os contestadores na  forma de combates singulares ou jogos para evitar as cenas de massacre.          

De todos os tabus alimentares, os estabelecidos pelos Judeus em sua religião estão entre os mais específicos, o que não impediu que propiciassem para Javé vitimas humanas para sacrifício. Moisés quando ensinou ao seu povo o que devia e o que não devia comer estabelecia princípios mágicos semelhantes refletindo nas suas vantagens e nos seus perigos imediatos. Nas religiões abramicas os interditos alimentares foram introduzidos milhares de anos atrás e marcam este sistema de crenças como dogma subconscientizado entre seus fiéis que a muito perderam o sentido de seu significado original como tradição da tribo. A lei mosaica estabelece que não podem comer animais que tenha patas divididas e rumine, qualquer coisa do mar que tenha escamas e barbatanas e todos os insetos de asas que possam também saltar. Por tal razão os porcos lhes são interditos, pois sua carne apodrece com rapidez no calor do deserto, camelos que são valiosos animais de tração e demais animais que podem causar problemas por serem venenosos ou indigestos. O código foi estabelecido para resguardar um pequeno grupo tribal de nômades do deserto que posteriormente transformou-se em nação numerosa e que indiferente dos habitats que ocuparam mantiveram suas regras religiosas mesmo que já não fossem necessárias. Na prática, hoje, só os mais ortodoxos mantém essas restrições.

Os muçulmanos possuem outros tabus similares. Um deles proíbe que se coma “tudo o que tenha morrido por sí próprio”, e faz bastante sentido em qualquer lugar ou época. Porém é difícil imaginar por que eles proíbem ferver um cabrito no leite da mãe. Partilham o tabu da carne de porco com os jacutos, certas tribos malgaxes, lapões, e muitas tribos de índio norte americanos, talvez por que, como entre os Tupis consideram o cervo acreditem ser o porco muito semelhante a carne humana pela sua brancura. Eles dividem seus preconceitos alimentares menos razoáveis com povos do mundo todo. As aves domésticas são tabus para os mongóis e os índios da Guiana. A carne bovina é proibida para os indus e parses. Coelho não é comido na China nem por nenhum velho bretão. Os ovos são desprezados pelos uagandas, baúnes e pelos velhos caribas. O leite é veneno para os diaques, malaios, drávidas e achantis. Na maioria dos casos, o tabu alimentar pode não ter influído muito no regime de nutrição dos povos, mas alguns podem ter efeitos muito adversos. Os zulus mal sobrevivem às margens dos rios cheios de peixes proibidos.

Entre os católicos o pão e o vinho são representativos da carne e do sangue do Cristo e segundo os fiéis pretendem proclamar um alimento comum de grande parte da humanidade que pode ser encontrado em quase todo o planeta, fato que auxiliou em muito a propagação da religião cristã. Essas duas substâncias são complementares e ideais dizem, pois constituem um alimento sólido e um líquido associados em várias culturas na conservação alimentar do homem. Como podem ser considerados desta forma, alimentos característicos da humanidade, são, portanto, os mais adequados para simbolizar a vida e a pessoa humana entre os católicos, fator este de vital importância para suas oferendas sacrificais. Jung percebia outros significados nestes dois alimentos, que não só aqueles imaginados pelos religiosos e apesar do sentido sagrado que possuem na missa. Mas para ele esses produtos são importantes resultados da civilização, expressam o esforço humano de transformação, seu devotamento, o trabalho árduo. A expressão “o pão nosso de cada dia” significa a preocupação do homem na conservação da vida. Sua produção, do plantio a colheita do trigo, a moagem dos grãos e a produção da farinha e do pão, garantem a existência do homem na sua escala evolucionária. Mas como “nem só de pão vive o homem”, associa-lhe o vinho, cuja cultura também expressa um esforço correspondente e um interesse especial. Por que ambos os alimentos são expressão do seu mais alto desempenho cultural. Onde se cultiva o trigo e a videira, convencionou-se, existe vida civilizada. Mas onde não há cultura de trigo e trabalho nos campos, ali reina a incultura dos nômades e dos caçadores, pensam os povos sedentários.

Portanto a oferenda do pão e do vinho se reveste do melhor produto cultural que o homem pode produzir, ou seja, aquelas suas virtudes que o tornam em geral capaz de produzir cultura. No que diz respeito a sua natureza substancial, lembra Jung, o pão é, sem dúvida, um elemento nutritivo. Dizem alguns que o vinho “fortifica”, mas como elemento nutritivo só em outro sentido. O vinho estimula, “alegra o coração do homem”, graças a uma substância volátil que nos idiomas pagãos se deu o nome de “espírito”. Por isso, ao contrário da água que neutraliza e dilue, é o vinho uma bebida que “entusiasma”, “inebria”, pois nele habita um espírito, um deus que produz o êxtase da embriaguez. Desde as bacanais dionisíacas, até a representação do rito cristão, o vinho representa o meio espiritual de conservação da existência, e o pão o meio físico ou material. Por isso, segundo Jung, o oferecimento do pão e do vinho representa a oferenda de uma realização cultural, ao mesmo tempo física (material) e espiritual. Entre tudo isso não perde o ritual seu caráter antropofágico particular.

Por outro lado os fatores sociais e culturais diversos desenvolveram entre alguns povos hábitos alimentares para o ocidente considerados exóticos. Ovos podres são uma especialidade em Bornéu. O arroz comido pelos índios Sandy Lake é temperado com fezes de coelho. Os esquimós do golfo Coronation engrossam a sopa com dejetos de caribu. Os obes da África Central lavam suas cumbucas de leite com urina. Em regiões da Hungria a urina é usada para lavar a boca. Nada disso desabilita estes homens nem suas culturas particulares.

Em sua conhecida obra "A Origem das Espécies" Darwin explanando sobre a seleção inconsciente praticada pelos antigos com animais domesticados que lhes são úteis para a sobrevivência comenta: "Se existem povos bastante selvagens para jamais pensarem em ocupar-se da hereditariedade dos caracteres entre os descendentes dos seus animais domésticos, pode acontecer que, entretanto, um animal, que lhes seja  particularmente útil seja mais preciosamente conservado durante uma época de fome, ou durante outros incidentes a que estão sujeitos os selvagens, e que por isso esse animal preferido deixe mais descendentes que os seus congêneres inferiores. Neste caso surge uma seleção inconsciente. Os selvagens da Terra do Fogo dedicam tão grande valor aos seus animais domésticos, que preferem, em época de fome, matar e devorar as velhas mulheres da tribo, pois as consideram muito menos úteis que os cães".  

O canibalismo remonta da pré-história humana e encontramos evidencias desse comportamento em todo o planeta. Conforme os estudiosos, mais recentemente há registros desses hábitos alimentares na Irlanda, no primeiro século a. C., na Escócia no séc. IV e na Espanha no séc. IX. Em 1564, o herói polonês Wisniowiecki derrotado pelos turcos, teve seu coração arrancado e comido num clássico gesto marcial destes cavaleiros guerreiros. Na Europa Oriental e na Ásia era comum aos carrascos oficiais reter para si como pagamento o corpo das vítimas. Na Boêmia, os ciganos comiam carne humana até meados do séc. XVIII, e demonstravam preferência por orelhas, palmas das mãos e solas dos pés. No séc. XIX, exploradores foram devorados na África, América do Sul e no Pacifico. Os chefes das ilhas Fiji davam festins canibalescos sempre que cortavam os cabelos e as jovens mães xavante comiam seu primeiro filho. Na Nigéria as vítimas eram desmembradas vivas em rituais sangrentos e havia um ditado no alto Amazonas: “é melhor estar dentro de um amigo do que ser engolido pela terra fria”. Faz muito pouco tempo que os indo-arianos abandonaram seus hábitos alimentares primitivos para estabelecer um tabu primordial contra o consumo da carne de seus parentes e inimigos, quatro mil anos na escala evolucionária são como segundos para os milhões de anos de evolução morfogenética efetiva.

No Zaire os escravos eram engordados para serem vendidos no mercado como comida. Na Austrália os aborígenes defumavam os corpos para deles se alimentar na época de escassez. No Oeste da África, algumas tribos vendiam os cadáveres a outras tribos. Na América do Sul entre os nativos era comum manter mulheres e homens prisioneiros em currais para engorde e procriação para suas crias servirem de alimento.

Nos registros zoológicos é menos comum encontrar relatos de canibalismo entre mamíferos carnívoros. Destes relatos a maioria são sobre animais famintos que se lançaram sobre outros mortos ou mortalmente feridos, da mesma espécie. Ou de mães neuróticas, normalmente cativas ou em situação de risco iminente que devoraram os próprios filhos. Nessas circunstâncias, dizem os estudiosos, perderam os objetos devorados identidade como membros da espécie devido a uma alteração dramática do meio ambiente. Assim a alcatéia faminta ou a mãe amedrontada tem o seu aspecto comportamental alimentar modificado por uma experiência exógena estranha. É certamente importante destacar que os outros poucos registros de canibalismo animal digam respeito a porcos e a ursos, ambos conhecidamente onívoros. Os estudiosos dizem que os predadores, de uma forma geral, não gostam da carne de seus semelhantes de espécie, razão de evitarem seu consumo.

Somente com os onívoros existe alguma possibilidade de confusão em relação ao seu regime alimentar. Eles comem carne, mas tem dificuldade de matar grandes presas. Como não estão naturalmente equipados como os grandes felinos com armas poderosas que poderiam ser mal dirigidas contra os da própria espécie e prejudicar sua sobrevivência a longo prazo ao comer seus semelhantes, não adquiriram inibição contra isso. Se encontram um membro de sua espécie morto agem como carniceiros e não tem qualquer impedimento para comê-lo. Assim os porcos e ursos (exceto o urso polar que é completamente carnívoro) às vezes viram canibais. Acontece de forma quase sempre fortuita, quando tem oportunidade de encontrar um porco ou um urso recém abatido que outros caçadores deixaram escapar.

O rápido salto evolucionário dos seres denominados homens que deixaram de ser herbívoro para serem carnívoros, e antes viviam primordialmente, como indivíduos desarmados e à mercê dos predadores, e depois armados com ferramentas mortais, não deu tempo suficiente para criar as defesas convenientes contra o canibalismo. Ao invés de passarmos pelas dezenas de milhões de anos necessários para desenvolver armas naturais como dentes grandes e patas afiadas, de forma oportunista, encurtaram o processo ao criarmos nossas lanças e espadas em algumas centenas de milhares de anos. Obtivemos armas assassinas sem a inibição natural existente entre os outros carnívoros contra utilizá-las em nossos semelhantes. Tudo o que temos para refrear nossos instintos naturais é um tabu criado e imposto pela opinião moral e religiosa, que às vezes, como veremos adiante, serve como forma para estilizar e camuflar ainda mais o processo antropofágico humano ou deter parcialmente seu impulso natural. Estes princípios agem quase sempre entre os membros do mesmo grupo, tribo ou etnia. Mas não é suficientemente forte para evitar que o homem esteja sempre matando outros homens, e ocasionalmente comendo-os, sob as mais diversas justificativas sectárias.


Foram estas mudanças na dieta que determinaram nosso desenvolvimento enquanto espécie no planeta. Foi necessário, ao herbívoro conservador arbóreo, participar de uma espalhafatosa ostentação carnívora antes de se tornar um sábio onívoro terrestre, isto é claro estritamente do ponto de vista alimentar. Suportando os rigores da perseguição aos recursos de proteína animal em continuo movimento, roubamos uma caminhada aos nossos primos símios. Jamais eles tiveram uma fase preponderantemente carnívora e como resultado pela sua falta de adaptação, o número de suas populações míngua a cada ano. Enquanto isso, o nosso multiplica-se em escala cada vez mais alarmante.

Estes relatos dos viajantes e estudiosos denunciam a propensão de quase todos os povos do planeta em utilizar seu próximo como alimento em algum momento de sua história. De forma estilizada, sua condição onívora e seus sistema de crenças associado diretamente aos hábitos alimentares de sobrevivência definiram sua conduta nos confrontos com seu semelhante desde tempos imemoriais. Como se pode observar entre os guerreiros nômades e tribos ameríndias, a necessidade da caça foi a mola mestra que estabeleceu entre o agente e seus semelhantes os conflitos e associações. Foram nas margens das reservas de água potável e em seus bebedouros onde a caça é mais abundante que ele trocou golpes com seus oponentes humanos e estabeleceu alianças onde a comida fez parte fundamental como fator de união ou conflito.

Ser onívoro influencia diretamente a forma como olhamos o planeta, do sistema de queimadas em pequena escala, tradicional entre os indígenas para criação de áreas de cultivo sazonal, evoluíram as grandes queimadas que destroem milhares de hectares de florestas tropicais anualmente para a criação de pastos para criação de gado. Nestas pastagens rebanhos são engordados para servirem às grandes indústrias alimentares que se multiplicam por todo o mundo. Seus sistemas automatizados fornecem alimentos processados em grandes redes de alimentação onde a finalidade alimentar antes religiosa ou comunitária de conservação foi absorvida pelos meios de comunicação que substituíram os xamãs na afirmação dos interditos e liberados ao insuflar as massas na nova religião do consumo. A sociedade tecnológica e aqueles que concentram a riqueza do planeta estabeleceram a economia de saque onde áreas cada vez maiores são dedicadas à produção de alimentos, uma verdadeira bomba de tempo ecológica foi acionada.


A agricultura intensiva significa superabundância de alimentos, o que permite o acumulo de provisões para o deslocamento de grandes grupos humanos, isto é, mais guerra. A submissão a este modelo exige que todos os aspectos da sociedade formem uma entidade integrada, sem possibilidades de escapatória a qual denominamos civilização. Com a domesticação dos povos, a divisão do trabalho e das hierarquias produziu especialistas da coerção em tempo integral: por exemplo, há evidências definitivas acerca da existência de soldados regulares como classe social no oriente próximo a 4500 anos a.C. Não existem guerras sem logística, nem soldados sem camponeses para supri-los de alimentos durante a campanha.

O alimento determina, como sempre determinou, o regime, a dieta dos povos, que é representada em suas instituições políticas e costumes e constitui a causa das guerras entre tribos e nações. Hoje vivemos as grandes contradições em uma nova fase mutante do processo econômico do homem, onde a produção do alimento se faz entre grupos que ainda o extraem da natureza e grupos que vivem nas grandes cidades na posição de captadores da produção que o embalam e processam para saciar a sociedade de consumo, criando uma classe intermediária e formam o topo do seu pensamento abstrato como formadores de opinião. Com a evolução das técnicas de produção, o “civilizado” avança em passos rápidos para o controle dos bens produzidos, pondo em evidência o conflito entre estes dois grupos sociais, em choque permanente e mudança irreversível do meio ambiente para fazer frente ao crescimento alucinante da população.


A propaganda tem um importante papel na formação da cultura no seu sentido agrário mais amplo, como formação dos comportamentos gregários humanos, de apaziguamento do rebanho. O termo "propaganda" pode ser definido como "uma associação ou projeto para propagar uma doutrina ou prática" segundo nos ensina o léxico. A palavra origina-se do latim propagare , que significa a técnica do jardineiro de cravar no solo os rebentos novos das plantas a fim de reproduzir novas plantas que depois passarão a ter vida própria. Por isso, a implicação do termo agrário, ao ser pela primeira vez empregado pela Igreja Católica Romana, sobre a difusão de ideias religiosas como uma geração artificial e cultivada pelas mãos dos evangelizadores. Em 1633, o Papa Urbano VIII instituiu  a "Congregatio de Propaganda Fide", tambem conhecida como a "Congregação da Propaganda" ou simplesmente "Propaganda", uma comissão de cardeais encarregada, então como agora, das missões estrangeiras da Igreja. Naturalmente, na época, foi considerado como um processo benéfico que, através do exemplo e da pregação, procuraria trazer os pagãos das trevas para a luz, como um método artificial ou cultivado no sentido de influenciar esses povos através da intervenção externa para difundir o cristianismo. Os missionários europeus usaram de todas as técnicas para influir nos corações e mentes dos neófitos. A analogia com as crenças dos autóctones e o sincretismo foram algumas dessas técnicas utilizadas com precisão. A doutrina da fé é uma arma poderosa usada até hoje nas mãos das elites dominantes, ideias que permeiam tudo de forma indelével entre o rebanho humano, como o ar que respiramos.       


É através da boca que se dominam as civilizações. Todas as culturas expressaram necessidades básicas de conforto oral. Nas ilhas dos Mares do Sul, sugam-se nozes de betel. O hábito de mascar goma e fumar é largamente difundido em nossa cultura global. Ambos servem para mitigar as necessidades de conforto de seus usuários. É do lactente que se origina essa necessidade de sucção oral para aliviar a tensão, a raiva, a impaciência e a frustração. Seus sucedâneos nos adultos servem para reforçar inibições de instintos naturais ocultos. As pessoas que sofrem da privação, ainda na infância, da satisfação oral encontram conforto no simples fato de estarem cercadas por abundância de alimentos, quer venham ou não a comê-los. O alimento é comumente usado como recompensa ou castigo pelos pais ao educar os filhos. Por trás dessas pulsões milhões de dólares são gastos pelas grandes corporações para condicionar a opinião de seus consumidores através de análises de comportamento visando direcionar seus produtos para satisfazê-los integralmente e torná-los cativos de suas marcas e aumentar seus lucros.   

O homem contemporâneo e principalmente o ocidental que habita os grandes centros urbanos acredita-se superior em relação aos povos autóctones das várias nações colonizadas que são chamados pelos estudiosos de “primitivos”. A alta velocidade da vida nas grandes cidades de forma conveniente torna o individuo entorpecido e hipnotizado à sua realidade imediata. Os novos sistemas de crenças elaborados pelos controladores da sociedade levam o homem cada dia mais ao beco sem saída do consumo desenfreado. A desertificação de grandes áreas planetárias é hoje o maior perigo à existência da humanidade e já se encontra à nossa espera na próxima esquina. O ovo da serpente do sectarismo e da xenofobia novamente está sendo incubado para confrontar a humanidade ao seu maior desafio que é sua existência no futuro próximo. Conflitos de baixa intensidade despontam pelo mundo nas áreas onde a falta dos recursos naturais levam o homem de volta às suas origens antropofágicas de disputa pelo meio ambiente e acesso aos seus recursos. A explosão demográfica lota os grandes centros urbanos que nada produzem de alimentos. Só profundas transformações de falsos paradigmas que comandam os conceitos e pensamentos ainda vigentes na sociedade contemporânea podem levar à mudança e conseqüente sobrevivência da espécie humana no planeta. Esta mudança urge.

Devemos aprender com a história recente destes povos chamados “primitivos” que pela dificuldade de modificar seus hábitos milenares estão quase todos extintos no planeta. Os poucos sobreviventes hoje vivem aculturados e longe de seus costumes tradicionais, mergulhados na mendicância e observados curiosamente pelos turistas, vivendo das sobras dos centros urbanos como previa Aldous Huxley no contraponto de seu “Admirável Mundo Novo”.


O ser humano por ser onívoro é um animal voraz que tem capacidade para comer qualquer tipo de alimento na sua forma integral ou transformada através da assimilação da proteína de outros mamíferos que sintetizam fibras vegetais mais resistentes. Não se deve estranhar o fato de que existam na maioria das culturas interditos e proibições sobre determinados alimentos e não o contrário. Todos os movimentos migratórios, toda a história da humanidade está contida em seu aspecto alimentar que define a cultura no seu sentido mais primordial. A cultura é aquilo que se come e para o processo alimentar não existe necessidade de se estabelecer norma legal permissiva.


Caçada ou Combate?
A GUERRA DO HOMEM –

“Ver-se-ão sobre a terra criaturas a combater-se sem trégua, com grandes perdas e mortes freqüentes de ambos os lados. Sua malícia não conhecerá fronteiras; nas imensas florestas do mundo, seus membros selvagens abaterão ao solo considerável número de árvores. Uma vez fartos de alimento, quererão saciar seu desejo de infligir a morte, a aflição, o tormento, o terror e o desterro de toda coisa viva. Por força de sua soberba, hão de querer elevar-se ao céu, mas o peso excessivo dos seus membros os reterá embaixo. Nada subsistirá sobre a terra, sob a terra, ou nas águas, que não seja perseguido, ou molestado, ou destruído; e o que está num país será carregado para outro; e seus próprios corpos se tornarão a sepultura e o conduto de todos os corpos vivos que mataram. Ó Terra, como tardas a abrir-te e a tragá-los nas aberturas profundas de teus grandes abismos e de tuas cavernas e a não mais mostrar à face dos céus monstro tão selvagem e implacável?”.
(Prophéties, em Les Carnets de Leonardo da Vinci. Trad. de Louise Servicen, Gallimard, 1942, Vol II. Pág 409.)

Com esta profecia Leonardo da Vinci (1452 – 1519 ) afirmou numa visão pessimista sobre a espécie humana, sua condição cruel, gananciosa e sectária. Ele pareceu antever em sua visão apocalíptica do futuro os sérios problemas que a humanidade hoje atravessa. No afã de impor sua presença no planeta colocou-se ela mesma em uma situação de impasse como ser onívoro fenomenal que devora imensos nacos da natureza planetária com o objetivo de manter um padrão de vida elevado para 20% de privilegiados de sua população global, e se comporta assim como um marinheiro bêbado que gasta seu soldo após longa jornada embarcado sem pensar no dia de amanhã. Para manter tais níveis de consumo para uma minoria o conflito permanente serve de moto continuo de exploração dos mais fracos, aliás, como sempre foi.

Para manter o status quo, como disse Konrad Lorenz: “O homem, como fator único de seleção, determinando o desenvolvimento de sua própria espécie, está infelizmente, longe de ser tão inofensivo quanto um carnívoro, mesmo o mais perigoso. A competição do homem com o homem se opõe diretamente, como nenhum fator biológico havia feito anteriormente, à ‘força benévola e eternamente criadora’, para destruir com brutalidade diabólica a maioria dos valores que ela criou, em nome de considerações puramente comerciais e em detrimento de todos os valores reais”.

Pouco se sabe quando o homem pré-histórico empreendeu a guerra como a conhecemos hoje, mas observando os relatos dos primeiros colonizadores europeus no Novo mundo e na África sobre como os conflitos ocorrem entre povos mais simples e os estudos antropológicos recentes sobre o tema, podemos traçar uma analogia, esboçar uma idéia de como seus grupos de caça podiam não só rastrear animais, mas também aos seus semelhantes humanos que concorriam na mesma dieta alimentar e, portanto ocupavam reservas de caça e coleta em intersecção direta de interesses territoriais e de alimentação. Não podemos deixar de especular sobre a extinção total dos Neandhertals e a supremacia Cro Magnon quase no mesmo período de tempo. Não teriam estes grupos humanos mais desenvolvidos e articulados na tecnologia bélica e utilizando seus cães recém domesticados chacinado seus parentes primatas? Os chimpanzés assim fazem com outros e tambem aos da sua espécie pertencentes a outros clãs e devoram seus “inimigos” que transformam em presas. De nada podemos duvidar à luz do conhecimento sobre as guerras que foram registradas, empreendidas posteriormente pelos humanos, quando os mais fracos são submetidos ou mortos pelos mais fortes. Os Cro Magnon com certeza eram antropófagos. Teriam eles sido responsáveis pela primeira guerra de extermínio utilizando seus cães de caça para localizar e matar suas vitimas? Não podemos afirmar, por falta de provas, mas podemos com certeza deduzir. Nunca saberemos com certeza a resposta. Entretanto alguns estudiosos pretendem que ocorreram intercruzamentos entre as duas espécies. Fêmeas possivelmente sequestradas nesses confrontos foram obrigadas ao convívio com os da outra espécie e eventualmente surgido frutos dessa interação. 

Entretanto os estudos levados a efeito pelos mais importantes especialistas encontram referencias de tais hábitos em todas as civilizações, estudiosos do assunto afirmam que sacrifícios humanos propiciados aos deuses são resquícios evidentes de um passado antropofágico que foi transformado com o tempo em culto religioso. A idéia primordial ainda é a absorção da energia vital do sacrificado visando propiciar a atenção do deus e sua aprovação evitando que fenômenos naturais como secas, pragas, e escassez de caça pudessem trazer fome e morte à tribo. Estes rituais são recorrentes em todas as civilizações conhecidas e são amplamente registrados em seus mitos e tradições.

O que mais chama a atenção não é como se imagina a freqüência destes costumes sacrificais ficarem restritos a povos exóticos de lugares distantes, mas pelo contrário integrarem o inconsciente coletivo de toda a humanidade e impregnarem todas as crenças de povos e civilizações que emergiram muito distantes umas das outras no tempo e no espaço. É o arquétipo humano da guerra enquanto processo antropofágico que consome o inimigo e absorve sua descendência para o clã vencedor. Usa a vitima como dádiva, holocausto ao seu sistema de crenças particulares ao seu povo e à sua etnia, e atua de forma universal como característica inalienável do homem enquanto espécie seja em que civilização for.

Muitos estudiosos buscaram no passado e recentemente mascarar as verdadeiras questões inerentes ao conflito humano pela simples razão dele permear a nossa estrutura psíquica e fazer parte de nosso comportamente atávico e por extensão, ainda hoje, fazer parte do comportamento dos grupos sociais e nações. Turney-High, um oficial de cavalaria amante das armas, estudou e classificou os conflitos humanos em categorias conforme sua própria definição sobre o que seria a "evolução da civilização humana" e desconsiderou como inferior, isto é, abaixo do horizonte militar, as manifestações guerreiras dos povos ditos "primitivos", e para tanto, enumerou os pontos que distinguem a "guerra civilizada", se podemos chamar assim do "combate submilitar": a guerra entre as nações se distinguiria segundo ele por "operações táticas", por "um comando definido e controle", pela "capacidade de conduzir uma campanha para reduzir a resistência do inimigo" caso não tenha sido destroçado no primeiro embate, pela "clareza de motivos" que movem o grupo, que considerou como algo mais que "meras divergências individuais entre famílias" ,e além disso, o "fornecimento adequado de forças no campo de batalha". ( H. H. Turney-High, op. cit. pp. 21-2 ) Ele era o chefe do departamento de antropologia e sociologia na Universidade da Carolina do Sul e possui um Ph. D. Ele passou muitos anos como um oficial de cavalaria e como um oficial de equipe na Segunda Guerra Mundial. 

Segundo ele, esses critérios diferenciam a "guerra" das contendas e das incursões e outras operações empreendidas por povos "primitivos" em alusão à pré-história, que ele considerava conflitos de curta duração, cuja finalidade seria conseguir objetivos militares muito limitados. John Keegan em seu livro: "Uma história da Guerra", concorda com esse ponto de vista e inclusive  segundo seu ponto de vista classifica as civilizações dos astecas e incas e por extensão os povos ameríndios abaixo do horizonte militar ( o que incluíria as civilizações africanas no mesmo patamar inferior ).

O que chama mais ainda a atenção e causa espécie é a distinção cartesiana entre "soldado" como o individuo que compõem exércitos em sociedades que conhecem a escrita em contraposição à de "guerreiro", o indivíduo que se envolve nos combates entre as tribos de caçadores coletores que chamamos de "primitivos". Um soldado que não possui o atributo do guerreiro de nada serve como pudemos observar no Vietnam em relação a baixa disposição de luta por parte das forças de ocupação francesa e norte americana, e sua conhecida baixa moral de combate e péssima disciplina, e mais recentemente nos conflitos ainda em curso no Iraque e Afeganistão. Como ensinava Maquiavel o exército movido pelo ganho não se compara ao que defende sua própria pátria. 

Os analistas do hemisfério norte pecam em suas "análises" pelo viés do preconceito cultural e da xenofobia, pois pretendem que só a evolução das ferramentas de destruição e o aumento da magnitude dos conflitos mudaram os objetivos de suas civilizações ao empreender suas contendas. O motivo da guerra é ainda o mesmo da caça ao próximo, isto é, garantir o sustento do contendor através da posse ou devoramento do inimigo e roubo de seus recursos. Até o fim da I Guerra Mundial as batalhas travadas  pelas nações européias não diferiam muito das batalhas "floreadas" de Astecas e outros povos ameríndios. Se assemelhavam a torneios de atiradores a distância. Regras para o mortícinio eram pré-estabelecidas entre as partes pela falta de senso estratégico dos generais e semelhança de suas escolas acadêmicas que preferiam estabelecer um "status quo"sangrento de ofensivas masivas em campo aberto inúteis e lutas em trincheiras, já que não participavam mais pessoalmente  dos combates. Nada mudaria em termos estratégicos até os movimentos de pinças da wehrmacht de Hitler nas Ardenas  contra o exército aliado que obrigou ao abandono os velhos conceitos militares europeus, e trouxe a baila  a idéia  da guerra total de movimento dos cavaleiros das estepes à luz de novas tecnologias aerotransportadas e blindadas que deram  origem a "blitzkrieg". A oposição entre “a batalha ritual” e a “verdadeira guerra” é falsa, em resumo “a guerra destrutiva e o ritual andam de mãos dadas” já que todas as guerras são processos ritualizados pelo ser humano em dimensões sempre crescentes ditadas pela evolução. 


É o que dizem alguns pesquisadores. Como diz Lienhardt sobre os Dinka, pastores africanos, “fazer um banquete ou um sacrifício implica com freqüência a guerra”. O ritual não substitui a guerra “a guerra, em todo momento e lugar tem elementos rituais”. Sublinham que a dicotomia entre “a batalha ritual” e a “verdadeira guerra” pode ser falsa.


A carnificina é atributo comum da guerra. Os povos na pré-história viviam e  também os povos "primitivos" ainda vivem em constante guerra com seu meio ambiente visando tirar a subsistência necessária, pois seu estado de existência é sempre marcial. Era ao deus Marte, sincretizado com outros nomes  pelas várias  culturas, que os antigos propiciavam o holocausto, quando imolavam em sacrifício  sua presas de guerra. Para o caçador coletor a guerra é só mais uma extensão da caça, que para ser bem sucedida deve possuir todos os pontos que Turney-High atribui exclusivamente aos exércitos organizados. O caçador ou guerreiro nem sequer consegue estabelecer distinções entre ambas as atividades, pois fazem parte de um só atributo do predador.

Só uma civilização que se pretende culta procura desvestir seus conflitos de sua reais atribuições para com ilações intelectuais justificar o escravizamento de povos e nações sob a forma de "direitos" a serem estabelecidos, "manutenção da ordem", "imposição da fé", "implantação da liberdade" e desta forma negar seu cunho antropofágico mais evidente, a agressividade camuflada sob o manto enganador do ordenamento civilizatório.

Nem mesmo a eficiência de suas estruturas militares pode vir em socorro dessa opinião chauvinista já que povos mais simples que constituíam suas castas de guerreiros venceram civilizações mais desenvolvidas e inflingiram grandes derrotas em exércitos regulares, sabendo manter até o final seus objetivos de campanha como foram os mongóis e os trácios-citas.

O que é estabelecido pelos analistas como superior é o decaimento do individuo ante a disciplina  e a instrução militar que transforma o homem civilizado em chacal e  o humanismo é tratado  como fraqueza nos conflitos contemporaneos, conforme facilmente podemos constatar no passado recente em povos com altos níveis de escolaridade e  pródigos em tecnologia como a Alemanha e o Japão, nações que cometeram ações sangrentas contra as populações dominadas que fariam enrubescer qualquer canibal ameríndio. Confundem evolução social com domesticação do indivíduo.


Alguns pretendem que foi na Ucrânia o local onde os primeiros cavalos foram domesticados pelo homem  por volta 3000 a.C.  Acreditamos que isso ocorreu alhures, mais longe, nas vastas planícies da Àsia. Esses animais de tração usados para a caça e para tocar rebanhos logo foram utilizados como animais de tiro de guerra e com eles hordas de cavaleiros e carros de guerra invadiram a Europa e Oriente próximo ou seguiram em direção onde hoje existe a China e a Índia com suas forças avassaladoras. Esses cavaleiros, de costumes bárbaros, nômades antropófagos e especialistas  em subjugar e domesticar suas criações impuseram sua superioridade bélica e domesticaram os povos que dominaram e os reflexos dessa domesticação permanecem até hoje com a denominação de civilização. Povos de agricultores foram domesticados e tangidos por essas verdadeiras máquinas de guerra e suas armas de metal.  

Podemos classificar esse fenômeno arquetípico da agressão  humana conforme sua  magnitude, de camuflação de intenções ou formas e definir os tipos de conflitos como já ocorreram e como ainda ocorrem hoje na humanidade nas suas duas formas de antropofagismo velado conhecidas e encobertas na psique do inconsciente coletivo:

1) Guerra Primária - Etnocentrismo - Genocídio (Canibalismo) - Expropriação de bens e ocupação de sítios - Personalismo.

2) Guerra Secundária - Culturalismo  - Mercantilismo - Escravidão (Expropriação da mão de obra)- Saque de reservas naturais - Impessoalidade.

As duas classificações não são excludentes e podem ocorrer a qualquer época ou em qualquer lugar, em natural intersecção, pois são motivadas por questões ambientais e alimentares que transcendem aspectos morais apesar de que a humanidade sempre reveste sua crueza com alguma explicação religiosa ou ideológica para permitir-se ser sectária e transgredir a integridade do próximo e dirimir sua culpa. Conforme a humanidade evoluiu o processo tornou-se apenas mais complexo, mas como temos notícia, em conflitos contemporâneos, ainda podemos identificar ambas as características da antropofagia natural dos nossos antepassados mais remotos. A polaridade nunca se estabeleceu entre Primeiro e Terceiro Mundo ou Ocidente dominador e Oriente distante já que todas as civilizações pautaram pelos mesmos arquétipos de devoramento do próximo, mas sim, entre matriarcado e patriarcado, cultura antropofágica e cultura messiânica. A ruptura histórica com o mundo matriarcal quando o homem deixou de devorar o homem literalmente para torná-lo seu escravo.


Os antropólogos ainda não conseguiram chegar a um acordo com relação as causas primárias da guerra, mas estabeleceram alguns pontos como fundamentais, que isoladamente, cada um deles, não precisam ser excludentes em relação aos demais, pela própria condição do ser humano e sua constituição de primata onívoro e animal social:


1) Guerra como forma de solidariedade - O homem como ser social está ligado ao seu grupo em particular, às suas cores, ao seu totem, ao seu clã como arquétipo de sua condição humana. Podemos verificar esse comportamento natural até mesmo hoje em dia observando a facilidade com que o homem comum adota grêmios e associações  esportivas e conforme se envolve com os jogos e participa das atividades de seu time preferido e pode até mesmo, quando submerso na multidão, partir para a violência mais brutal para dar vazão ao seu instinto de solidariedade grupal na maioria das vezes de forma ilógica e amoral. Tropas quando imbuídas desses valores podem cometerem atrocidades em total solidariedade ou "espírito de corpo". Por exemplo, o espirito de companheirismo era incentivado entre os SS nazistas, bem como suas responsabilidades comuns, assim como o ideal aglutinador da própria juventude alemã oriunda do movimento estudantil fascista que antecedeu a Grande Guerra. 


2) Guerra como divertimento - Os povos desde a antiguidade possuem critérios claros para valorizar o papel de seus candidatos para a guerra. Os valores de disciplina, solidariedade, coragem devem integrar as qualidades do guerreiro como base de sua formação e fazer parte de seu cotidiano como um processo lúdico, o que envolve o desenvolvimento de atividades na infância que visam criar os valores necessários para a formação do jovem apto para a guerra. Ainda hoje nas brincadeiras infantis sobraram os resquícios de jogos marciais que servem para moldar o futuro guerreiro. Na antiga Pérsia, no tempo de Ciro, os jovens eram educados pelo estado e ainda crianças eram separados os que iam exercer práticas administrativas e subalternas que eram devidamente castrados e viravam eunucos, dos que iam aprender as artes da guerra e cuja virilidade era incentivada através de jogos marciais, que poderíamos chamar de divertimento. O mesmo ocorria entre os espartanos que educavam desde pequenos os seus filhos através da educação estatal marcial para que pudessem exercer seus papéis como hoplitas na falange, em absoluta camaradagem com seus pares. A guerra nesse caso é um fim em si que é incentivada como uma prática esportiva. Essa modalidade de valorização dos esportes marciais está ainda presente nas sociedades modernas em seus jogos como nas Olimpíadas e nos Campeonatos de esportes onde cidades, estados e nações disputam com seus eleitos contendas aparentemente sem vitimas onde os valores da disputa intergrupal são salientados e considerados como entretenimento. Jogos com pelotas, tiro ao alvo, arco e flecha, corridas, torneios equestres são atividades esportivas marciais disfarçadas onde as cores de cada nação são realçadas e seus participantes vitoriosos são tratados como heróis de um conflito sem vítimas aparentes. É um comportamento exclusivamente cultural de incentivo ao sectarismo para acalentar o sentimento de clã, tribo e nação no individuo e desviar suas motivações viscerais de violência em práticas rituais infantis que acompanham a evolução individual do indivíduo como processo inconsciente desde a infância até sua idade adulta como cidadão na sociedade. Essas práticas de associações infantis e  de jovens como o escotismo foram amplamente utilizadas pelas nações e grupos dominantes para formar candidatos às forças armadas através de atividades pseudo educativas. A juventude hitlerista é o exemplo mais marcante, de suas fileiras saíram milhares de jovens de até 17 anos para ingressar nas Waffen SS como soldados de infantaria.


3) Guerra como inerente a natureza humana - Segundo alguns autores as características biológicas particulares de reprodução e sua relação especial com o meio ambiente moldaram no homem as condições naturais da agressividade com o seu semelhante. Esses foram os fatores que garantiram o sucesso evolucionário da espécie que a colocou situada no ponto mais alto da piramide alimentar, o predador fenomenal acima dos maiores e mais fortes mamíferos, um animal onívoro que para garantir sua sobrevivência é capaz de saciar-se até mesmo com a carne do seu próximo. Para garantir sua condição excepcional de predador dentro da natureza criou instituições e crenças que favoreceram a perseguição do mito do guerreiro como ideal de civilização. A cultura marcial é uma consequência de sua topologia somática e de sua especiação de carnívoro sedento de proteína animal e não o contrário. Suas relações com o meio são fruto desse processo filogenético dinâmico que ainda não chegou ao fim. Negar isso ou dar cores exclusivamente culturais ao conflito humano é não observar com atenção seus desenvolvimentos atuais e suas contradições principalmente nos países ditos "civilizados" e a sua ideologia do conflito permanente.


4) Guerra como forma de politica - Essa é uma evolução mais recente do processo onde são os interesses da cidade estado que motivam os conflitos. O excesso ou a escassez de riquezas podem levar os estados a fomentar conflitos externos e assim conter as pressões internas principalmente as provocadas pelos jovens reprodutores sem parceiras e que por falta de recursos passam a representar uma ameaça intestina ao estado e seus governantes. Um inimigo externo verdadeiro ou fictício serve como uma válvula de escape para esvaziar as pressões internas e evitam a delinquência juvenil, um grave problema para as estruturas de poder das sociedades primitivas ou civilizadas. Onde faltam os recursos naturais sobram ideais de militarismo. O problema é resolvido pela ritualização do conflito através da instrução do ódio ao inimigo que deve ser aniquilado. Assim de um jeito ou de outro pressões demográficas são reduzidas quando exércitos são postos em marcha em direção ao inimigo. O jovem delinquente encontra na guerra o terreno ideal para dar vasão às suas potencialidades de agressividade e pode romper com as inibições naturais que são constituídas na vida urbana normal. Enquanto os jovens reprodutores vão em direção ao perigo e a morte, os velhos reprodutores Alfa podem dispor em segurança de um rebanho maior de fêmeas para acasalar garantindo sua manutenção de poder na comunidade e a posteridade através da descendência garantida. Essa é a essência da politica.


O homem primitivo começou utilizando clavas, adagas e lanças, para auxiliá-lo nas caçadas. Criou suas ferramentas a partir da observação detida da natureza ao redor e seus elementos, tomando emprestados os instrumentos dos animais a sua volta. O osso descarnado de uma presa, talvez com um agudo casco atado, tornou-se um porrete mortal, e o dente de sabre do tigre, valioso troféu, serviu como a primeira adaga e goiva. Os chifres de antílope como o órix, tornaram-se instrumentos perfurantes semelhantes a compridas adagas, e o maxilar com a fileira de dentes sua faca. Mais tarde, ao evoluir seus conceitos começou a trabalhar a pedra e o metal, contudo seus modelos ainda eram influenciados pelos animais que observava na natureza de onde haviam surgidos os protótipos iniciais. Para compensar a falta de velocidade inventou as armas de arremesso a partir das facas dando-lhes formato aerodinâmico. Manufaturou então arpões e flechas. O homem deu aos seus projéteis mais poder e letalidade, cobrindo-os com veneno, mas isso foi a partir da observação dos animais peçonhentos.

O homem é o que é, e faz o que faz porque na sua natureza ele desenvolveu o instinto de assassino furtivo e oportunista. Estava com fome, um importante e visceral motivador, e precisava de comida, e a comida que mais desejava era a carne. Portanto aplicou seu cérebro privilegiado de predador oportunista cada vez mais ao problema de desencadear a matança e assim, a partir da sobrevivência dos mais aptos, influenciou uma série de ações inatas que ainda hoje afetam nossas vidas. Porque nossos ancestrais viviam nas planícies observando suas presas e necessitavam manter suas mãos livres para carregar seus instrumentos de arremesso e de maior velocidade de movimentos sua estrutura física tornou-se vertical. Atualmente em função disso, os problemas de coluna endêmicos, mísseis balísticos e desordens sociais são frutos do mal e do bem, todos produzidos pela nossa dieta alimentar. Somos, no entanto, o resultado de uma experiência de êxito com a carne. Ou, mais precisamente, da carne.

Etimologicamente a palavra “Canibal” provem do espanhol como forma alterada de “caribal”, de caribe (caraíba, carib = audaz, corajoso ) originalmente usado como designação dos caraíbas antilhanos de quem os viajantes europeus reportaram possuir costumes antropofágicos e possivelmente como inflação de “can”, cão do francês: “Cannibal”, e passou a significar como todo aquele que come carne da sua mesma espécie. O uso comum da palavra passou a designar no sentido figurativo “pessoa cruel, feroz, bárbara”. Na opinião do europeu da época do descobrimento do Novo Mundo, tal comportamento parecia próprio de animais ferozes e negava sua humanidade. É comum os povos atribuírem condutas questionáveis à integrantes de culturas que desconhecem ou tem uma vaga idéia. Este tipo de ideologia xenófoba marcou toda a conquista das terras que foram depois denominadas “Américas” onde os “canibais” foram quase que completamente exterminados pelos europeus sob pretexto de implantar uma “civilização cristã”. Olhando em retrospectiva fica dificil perceber quem foi o antropofágo de fato.

Em “Totem e Tabu” (1913), Freud propôs uma teoria da agressão grupal. Ele sugeriu que a família patriarcal primitiva se ramificara devido às tensões sexuais dentro dela, como nos bandos de primatas, onde o velho reprodutor tem a primazia sobre as fêmeas do bando, levando seus descendentes machos sexualmente privados a matá-lo e come-lo. Segundo Freud, cheios de culpa, eles então proibiram e tornaram tabu a prática do incesto e instituíram a exogamia – o casamento fora do âmbito familiar -, com toda a sua potencialidade do rapto de esposas de outros clãs, estupros e contendas vingativas entre clãs e depois entre tribos, das quais o estudo sobre as sociedades primitivas tem vários exemplos.

Conforme Francis Huxley em sua obra “O Sagrado e o Profano” ao comentar o que foi dito por Freud afirma: “Mas tabus dessa natureza escondem ainda outra armadilha. As únicas coisas dignas de constituir matéria de tabu são aquelas das quais o homem tenha um desejo natural de fruir. Foi assim que Freud explicou a natureza do tabu do incesto, contra todos os que queriam ver nele uma proibição natural, por instintiva. Ao contrário, disse Freud, é o incesto, não o tabu, que é instintivo. O tabu é algo de “anormal”, que contradiz o instinto e o sublima numa atividade de maior força mas num plano diferente”.

E conclui: “Mas qualquer que seja a maneira de encararmos o assunto, podemos concordar com Freud em que tanto cultura quanto religião originaram-se de um ato primevo de proibição que dividiu o mundo entre o permíssivel e o interdito, um deles feito comum, o outro posto de parte”.

Já os etólogos, que combinam o estudo da psicologia com o estudo do comportamento animal e sua condição fisiológica, produziram explicações mais rigorosas. O “homo sapiens sapiens” é muito mais antigo que o surgimento das primeiras civilizações sobre a terra, considerando sua existência em relação às primeiras cidades estado fazem de nossa civilização atual, em escala temporal, proporcionalmente mais próximos no tempo histórico dos sumérios como se milênios valessem apenas minutos. Durante centenas de milhares de anos o homem competiu com os grandes mamíferos para garantir seu sustento e obter a supremacia no ambiente. Homens mortos há pelo menos 100 mil anos atrás apresentavam ferimentos provocados por feras. Animais como ursos com laminas enterradas em seus ossos foram descobertos provando a luta dos antigos contra os predadores e em favor da própria sobrevivência e de seu núcleo familiar. O aumento da caixa craniana alterava o período de crescimento do filhote humano e já obrigava o estabelecimento de uma unidade familiar para garantir a sobrevivência do pequeno indefeso.

Nesta época seus instintos ainda estavam aguçados, pois mantinha ainda laços estreitos com a natureza, vivia junto com as feras que combatia, que matavam e se alimentavam em seu território de caça e ele ainda retinha as habilidades que a civilização hoje embotou com suas comodidades, era rápido e seus sentidos da audição, olfato e visão eram altamente treinados pela lida de caçadores furtivos. Sua resistência às intempéries e seu conhecimento detalhado dos hábitos dos animais de caça e as armas rudimentares que dispunha faziam dele apto em garantir relativa fartura de alimento para dar condições ao salto evolucionário posterior.

Não temos registros de suas façanhas, fora as descobertas arqueológicas, pois viviam antes da invenção da escrita mas podemos traçar uma analogia bem próxima com os povos que habitaram as Américas antes da dominação européia para estudar suas idéias e seus valores sem ainda a interferência maciça do ocupante europeu.

Hans Staden, artilheiro mercenário alemão que participou da colonização do Novo Mundo junto aos espanhóis, portugueses e franceses no séc. XVI foi aprisionado pelos terríveis Tupinambás, ferozes guerreiros de origem caribe que habitaram as costas do Brasil na altura do que hoje seria o estado de São Paulo onde foram paulatinamente e completamente extintos. Ele relatou em suas memórias como estes indígenas faziam a guerra aos seus inimigos de outras tribos:

“Quando querem empreender uma expedição guerreira no território inimigo, os chefes reúnem-se e discutem como isto deve ser feito. Informam os homens em todas as cabanas para que se armem e, nessa ocasião, mencionam uma espécie de fruta de uma árvore; partem quando a fruta amadurece, pois não conhecem nem os anos nem os dias. Para a partida também orientam-se pela desova de um tipo de peixe que em sua língua chamam de pirati. O período da desova chamam de piracema”.

“Para essa época preparam arcos e flechas e farinha grossa de mandioca, que chamam de uiatán e a usam como alimentação. Depois consultam os pajés, os feiticeiros, para saber se irão vencer. Eles dizem que sim, mas mandam que atentem para os sonhos nos quais sonham com os inimigos. Se a maior parte sonha que vê a carne de seus inimigos assando, isso significa vitória. Mas se vêem a sua própria carne assando, isso não significa nada de bom, e então devem ficar em casa”.

“Mas, quando os sonhos lhes agradam, armam-se, realizam em todas as cabanas grandes festas, bebem e dançam com seus ícones, os maracás, e cada um deles pede ao seu ícone que o ajude a capturar um inimigo”.

“Então começam a expedição. Quando chegam perto das terras do inimigo, na noite anterior ao dia do ataque contra a área inimiga, os chefes ordenam que todos prestem atenção aos sonhos que tiverem durante a noite”.

“Participei de uma expedição guerreira na companhia deles. Quando chegamos perto das terras do inimigo, na noite anterior à da invasão, o chefe percorreu o acampamento e disse a todos que prestassem muita atenção aos sonhos que lhes viessem à noite. Além disso, ordenou aos jovens que caçassem e pescassem ao amanhecer. O que fizeram. O chefe mandou que preparassem o que caçaram. Então chamou os outros chefes para que viessem à frente de sua cabana. Sentaram-se todos em círculos no chão. Fez com que lhes servissem comida. Quando terminaram de comer, contaram os sonhos, pelo menos os que lhes agradaram. Depois dançaram de alegria com os maracás”.

Aquele que sonhava com a vitória poderia chefiar os seus pares como líder do ataque. O que chama a atenção neste relato é o mágico da mente dos homens que devemos evitar de chamar de primitivos por não entendermos suas motivações ou por considerar que o assassinato de nossos inimigos por razões políticas ou religiosas, sem comer suas partes, seja um processo mais “civilizado” ou superior. A preocupação na observação dos sonhos como um ato sagrado pelo pajé, considerado na época pelo autor, sem maiores pretensões intelectuais e cheio de preconceitos religiosos, um sinal maligno da superstição natural de silvícolas que ainda não conheciam as panaceias da religião católica, hoje seria encarado com a maior seriedade pelos estudiosos da mente humana. Freud e Jung, os magos do pensamento, ainda não existiam para analisar as reações desses pseudo selvagens que através do método empírico já haviam descortinado um método de análise dos sonhos.  A guerra é arquétipo do homem, através dela o ser humano externa sua agressividade natural, coloca a mostra seu verdadeiro complexo da psique. Seus efeitos sobre a mente do guerreiro liberam sua individuação em sociedades onde o sistema de crenças não envolve culpa ou arrependimento. 


“Observam as cabanas de seus inimigos à noite. O ataque ocorre nas primeiras horas da manhã, com o clarear do dia. Se capturam alguém que esteja gravemente ferido, o matam na hora e levam sua carne assada para casa. Levam os vivos para casa e matam em suas aldeias os que não foram feridos ou os que ficaram levemente feridos”.

“Atacam em meio a uma grande gritaria, martelam o solo com os pés e sopram em instrumentos feitos a partir de cabaças. Todos levam cordas para amarrar os inimigos”.

“Ornam-se com penas vermelhas como sinal de identificação em relação aos adversários. Atiram rapidamente e usam flechas incendiárias contra as cabanas de seus inimigos, com o intuito de queimá-las. Quando um deles está ferido, empregam ervas especiais para curá-lo.”

No caso específico das tribos Tupinambás não era a escassez que determinava seus confrontos, mas o período de fartura que propiciava suas campanhas militares contra seus vizinhos. É com a abundância de suas reservas que contavam para poder empreender seus combates e aprisionar o maior número de inimigos. O consumo levava ao aumento de população, este crescimento obrigava à competição, e a competição levava ao conflito.

Era seu meio ambiente que determinava seu padrão de conduta e estabelecia entre os antagonistas as regras que definiam os conflitos emergentes. A complexidade desta relação é produto de uma evolução geométrica de indivíduos onde procriação, alimentação e crença tinham fator determinante, como ainda tem hoje entre as nações contemporâneas. Nada mudou, a não ser uma amplificação dos movimentos das sociedades preocupadas em saciar e saciar-se dos recursos que hoje sabemos são limitados no planeta. Os movimentos migratórios, como sempre, remexem este caldeirão de interesses instintuais levando as multidões, como rebanhos ao matadouro, para dentro de seus cercados como imaginava Chaplin em seu inesquecível “Tempos Modernos”.

Quando os tupis organizavam uma incursão, seu objetivo movido pelo sentimento de vingança era o desbaratamento da tribo inimiga que levava a morte não só de homens, mas também de mulheres e crianças, e na fuga precipitada dos sobreviventes de seu povoamento. O desbaratamento resultava normalmente no desalojamento das vitimas e na destruição de seus lares e plantações. Os vitoriosos raramente ocupavam o território da tribo vencida com medo que os remanescentes espíritos dos vencidos pudessem prejudicar os vencedores. Entretanto suas zonas de caça passavam a integrar o espaço vital do vencedor sendo suas motivações ecológicas já que suas fronteiras não eram formais. O espaço do inimigo virava terra de ninguém, uma verdadeira reserva de caça. Seu plano de guerra se restringia a comer o inimigo morto

Entre os ianomanis, um povo de cerca de 10 mil almas que habitam o norte do Brasil, as relações inter- tribais são complexas e seus costumes remontam aos tempos pré-históricos da humanidade. Apesar de sua conhecida ferocidade, quando chega o período seco organizam suas festas para festejar com outra aldeia ou para serem festejados. Nesta oportunidade as trocas de presentes proporcionam a base de confiança necessária para formarem laços de relacionamento. A festa inclui a troca de mulheres como dádivas para tornar os laços de amizade em relações familiares que podem ser proveitosas e garantir diversidade genética dos grupos.

Possuem um código de ferocidade que chamam “Waiteri”, quando indivíduos do sexo masculino demonstram seu espírito guerreiro impondo sua valentia aos demais e até tribos inteiras impõem sua agressividade às demais visando preservar seus núcleos e convencê-las sobre sua ferocidade afamada. Segundo os estudiosos tratam suas mulheres com violência e as agridem com espancamentos e até mesmo flechadas para demonstrar seu “Waiteri”. Podem realizar estupros coletivos das mulheres das tribos vencidas. 

Jung comenta sobre o assunto em sua obra “Psicologia e Religião”: “Ainda hoje podemos observar com que facilidade se perde a consciência nas comunidades relativamente primitivas. Um dos ‘perils of the soul’ é, por exemplo, a perda de uma alma, que ocorre quando uma parte volta a ser inconsciente. Um exemplo é o que vemos no estado de Amok, que corresponde ao furor guerreiro (Berserkertum) das sagas germânicas. Trata-se de um estado de transe mais ou menos completo, muitas vezes acompanhado de efeitos sociais devastadores. Mesmo uma emoção comum pode causar uma considerável perda de consciência. Por isso é que os primitivos empregam formas refinadas de cortesia: falam em surdina, depõem as armas, arrastam-se pelo chão, curvam a cabeça, mostram a palma das mãos. Nossas próprias formas de cortesia ainda revelam uma atitude “religiosa” em relação a possíveis perigos psíquicos. Ao darmos um “bom dia”, procuramos conciliar de modo mágico as graças do destino. É uma falta de delicadeza conservar a mão esquerda no bolso ou atrás das costas, quando cumprimentamos alguém. Quando se pretende ser particularmente atencioso, cumprimentam-se a pessoa com ambas as mãos. Diante de alguém de muita autoridade inclinamos a cabeça descoberta, ou seja, oferecemos a cabeça desprotegida ao poderoso, para captar suas graças, já que ele poderia ter um súbito acesso de fúria. Às vezes os primitivos chegam a tal grau de excitação em suas danças guerreiras, que chegam a derramar sangue”.

Quando ocorre a troca de mulheres na festa anual a violência é amenizada, mas surtos espontâneos de agressividade podem ocorrer a qualquer tempo. Os homens buscam seduzir as mulheres dos outros, o que provoca violência dentro da aldeia, fazendo que surjam outros grupos separados e hostis. Na relação de trocas de mulheres uma aldeia mais forte pode exigir uma cota injusta das aldeias menores. Uma mulher que tenha sido demasiadamente mal tratada pelo esposo pode ser reclamada por um parente de uma aldeia vizinha.

A violência ocorre de forma gradativa e estilizada. Os níveis são o duelo de socos no peito, a luta de porretes, a luta de lanças e as incursões às aldeias inimigas. Apesar de estilizadas, isto é, condicionadas aos costumes tribais elas se revestem de grande agressividade e baixa mortalidade.

Os duelos de socos no peito ocorrem nas festas entre aldeias e são uma reação entre membros diferentes de tribos sobre as disputas de valentia, trocas de alimento, exigências injustas de presentes ou mulheres. Após ingerirem o paricá ou o cauim que são produtos alucinógenos e causam embriaguez, um contendor avança e exibe seu peito. O que aceita o desafio desfere violento soco no peito do desafiante. O que recebe o soco deve demonstrar indiferença e pode receber até quatro golpes antes de pedir a vez demonstrando assim sua resistência física. Dos socos no peito o duelo pode passar para bofetadas que são desferidas lateralmente até o perdedor perder o fôlego. O duelo continua até que um dos contendores fique incapacitado ou que ambos desistam caso tenha sido combinado de antemão.

As lutas de porretes são mais virulentas e podem ter sua origem como causa de adultérios ou suspeita de adultério. O queixoso vai para o centro da aldeia e finca um pau de 10 metros no chão ao que passa a insultar o acusado. Se o desafio for aceito ele se apóia na vara que fincou ao chão e espera o golpe de porrete. Uma vez recebida a porretada é sua vez de bater. A visão do sangue promove uma ação imediata nos contendores e assistentes que passam a brandir seus tacapes e tomam partido enquanto a contenda vira um vale-tudo. O chefe da aldeia pode intervir ameaçando com o arco e flecha os contendores para aplacar os ânimos. Muitas vezes ocorrem ferimentos fatais obrigando o contendor a fugir da aldeia para não ser morto pelos parentes do perdedor ou a tribo atacante recuar para sua aldeia. A conseqüência imediata é a busca da vingança que ocorre com a incursão na aldeia vizinha.

A luta de lanças envolve a tentativa de desbaratamento da aldeia adversária que ao ser atacada foge e busca se reagrupar para tentar nova ofensiva. Vários homens ficam feridos e a mortalidade é pequena. Este movimento provoca quase sempre a organização de uma incursão. Quando organizam a incursão não se preocupam com quem vão matar. Ficam de emboscada perto da aldeia inimiga e esperam uma vítima indefesa. Alguém buscando água, tomando banho ou fazendo suas necessidades, que é morto de tocaia e o matador foge para sua aldeia. A fuga é garantida com sentinelas na retaguarda, pois um ataque provoca outro sucessivamente.

O auge das hostilidades é a “festa traiçoeira”, quando uma aldeia belicosa consegue que seus aliados de uma terceira aldeia convidem seus inimigos para uma festa e então os surpreendem. São mortos todos os homens e jovens do sexo masculino e as viúvas são distribuídas entre os vencedores.

Suas disputas não são por territórios, mas sim por soberania, medida pela capacidade de uma tribo manter suas mulheres e manter trocas justas de mulheres com as demais aldeias. Daí decorre suas exibições de ferocidade para prevenir a ação de sedutores, ladrões de esposas e tocaias.


Os povos caçadores coletores do Kalahari na África Meridional até a bem poucos anos eram considerados exceção pelos antropólogos. Uma corrente neorosseauneana acreditava que a caça e a coleta tornavam essas culturas pacíficas como seriam nosso antepassados no neolítico que expulsos do paraíso da primitividade pela revolução agrícola tornaram-se então guerreiros assassinos como uma aquisição cultural mais recente. Atualmente os etnólogos e estudiosos de comportamento discordam dessa opinião. Saques, roubos de gado e vinganças eram atividades comuns entre os bosquimanos do Kalahari, atividades que hoje em dia se tornaram em menor escala em função da presença do homem branco, o desbaratamento de suas populações, sua consequente redução, o que obrigou ao convívio os vários clãs por medo natural da própria extinção.


A estratégia de ataque desses povos se assemelha ao comportamento de caça. O estudioso (Wilhelm) descreveu um desses ataques de surpresa organizados pelos bosquimanes kung. Eles haviam discutido com outro grupo pela possessão de uma peça de caça e como resultado da disputa foi morto um homem. O bando a que pertencia o morto planejou a incursão vingativa. Todos os homens que podiam empunhar armas cercaram em segredo a aldeia rival. 


"Os habitantes do povoado não percebem o perigo que se avizinha. Ao cair do sol, as mulheres retornam cantando do campo e se dispõem a preparar a ceia. O ruído dos pilões que trituram os alimentos se propaga até muito longe, avisando aos inimigos a presença de ocupantes no povoado. As famílias sentadas a roda conversavam enquanto consumiam a ceia. Já tinha escurecido o crepúsculo e a noite envolveu tudo numa profunda escuridão. Aqui e ali tremeluzem as últimas chamas das fogueiras. Uma criança pequena chora em sonhos".


"Enquanto isso os inimigos se aproximam por todos os lados, se esgueiram como serpentes. Aguardam pacientemente as primeiras luzes da aurora. O círculo dos atacantes vai se estreitando paulatinamente. Temem que alguém esteja acordado ou que os cães possam ser alertados. A noite transcorre com absoluta tranquilidade. A luz da aurora anuncia o novo dia enquanto todos dormem e os cães esquecidos da vigilância dormitam em volta a fogueira para combater o frio. O inimigo se  aproxima arrastando-se. Está amanhecendo. De repente irrompem no povoado por todos os lados e caem sobre os desgraçados que dormem ainda proferindo estridente alarido empunhando seus dardos. Alguns dos homens acordam e tentam empunhar suas armas, mas logo sucumbem. Um tenta a defesa com sua lança, em desespero, mas logo é sobrepujado pela superioridade numérica dos atacantes e caí crivado de ferimentos de lança. As mulheres e crianças reagem aterrorizadas e tentam escapar mas são assassinadas sem piedade. Uma mãe com seu filho ao colo quase consegue fugir mas uma flecha lhe alcança pelas costas. Cheia de dor deixa cair a criança e tenta arrastar-se, mas falham as forças e gemendo se deixa cair enquanto seus perseguidores se aproximam em meio de atrozes alaridos. Uns quantos golpes acertados com o kirri destroçam o cranio do nenê e acabam o serviço com a mãe. Só uns poucos afortunados conseguem por casualidade escapar para um povoado amigo. Um sol vermelho se levanta desde o este e ilumina com seus primeiros raios uma cena de horror. Os vencedores se dedicam a saquear a aldeia, levando consigo tudo o que pode ser aproveitável. Quebram os potes de barro, tocam fogo nas choças. Carregados com seu abundante botim, os bosquimanos o caminho de regresso aos seus lares. Ao longe ainda se escutam os ganidos de algum cão em busca de seu dono; logo reina um silêncio sepulcral. Os abutres começam a voar em círculos sobre o lugar de tragédia, logo os seguem outras aves carniceiras e ao chegar a noite vem as hienas e os chacais para o banquete com os cadáveres. Quando depois de alguns dias voltam os escassos sobreviventes, de seus familiares encontram apenas uns ossos espalhados por todos os lados. Mas ainda chegará para eles o dia da vingança e então pagarão seus inimigos com a mesma moeda, mesmo que tenham transcorrido anos. Assim a guerra entre as tribos inimigas não se interrompe jamais. A morte de um é paga por todos".


Segundo outro estudioso (Strehlow), as tribos Aranda, caçadores coletores que vivem na Austrália Central, guerreavam da seguinte maneira: os chefes que desejavam guerrear convidavam outros chefes aliados previamente enviando-lhes emissários. Estes, por costume, entregam uma corda trançada com cabelos de cadáveres, um osso de ornamento nasal, uma pena de águia e uma tijurunga, pequena tábua, um amuleto onde estão inscritos símbolos sagrados. Não é preciso dizer nada: os objetos falam por si. Se o grupo não quiser a inimizade dos aliados deve conclamar uma assembléia para decidir sua participação ou não no conflito. Depois de acertada a participação da tribo o chefe devolve ao enviado os objetos e ele segue para outro povoado levando a mensagem da sua tribo. Todos os guerreiros convidados ao combate se reúnem na tribo convidada. Antes de empreender a marcha para a tribo que invocou a ajuda, enviam-lhes mensageiros que anunciam a chegada da tropa com seus chefes guerreiros. Durante o trajeto vão acendendo fogueiras para avisar que já estão a caminho. Logo o chefe que vai fazer a guerra ordena que os guerreiros se pintem com seus ornamentos, e estes decoram seu peito e abdômen com raias negras e brancas bordeadas. Os guerreiros aliados que chegam mostram uma decoração corporal similar. Os guerreiros dos diferentes grupos se saúdam entre si gritando: "Wa wa wa bau". Então o chefe que fez a convocação dos aliados diz: "Esta noite dormiremos aqui, amanhã sairemos para vencer os inimigos". Durante toda a noite os guerreiros se inflamam de ardor bélico cantando suas canções de guerra. Strehlow traduziu um desse cantos: 


De onde são esses que vieram de tão longe
Se pintaram de ébano
Golpeia seu pênis com o osso afiado
coloca o osso na borda do pênis
O sangue flui como uma torrente do grande pênis
e encharca os ombros de quem está sentado adiante
Na minha própria zarabatana
coloco o dardo, coloco o dardo
A zarabatana dispara o dardo, dispara o dardo;
o dardo alcança o inimigo, alcança o inimigo
O dardo com seu gancho
rasga aos inimigos
O dardo se crava, se crava
produzindo um mortal estalo
lhe fere de morte, lhe fere de morte
e não pode tirar o dardo da ferida
O ferido é derrubado como um jackarro (ave pernalta)
desmorona igual ao céu
Lhes tiraremos as entranhas e comeremos sua manteiga
depois de tirarmos sua pele
rasgaremos suas tripas


Os cantos são referentes ao ritual que praticam os guerreiros na noite anterior ao ataque: com um osso afiado se rompem a ferida da circuncisão que na Austrália Central é realizada na uretra no sentido longitudinal (subincisão) no rito de passagem para a idade adulta e deixam fluir o sangue mutuamente sobre o ombro direito com o objetivo de fortalecer o braço correspondente. Por outro lado esse ritual preparatório de doutrinamento serve para familiarizar o guerreiro com o ato da morte. E como não podia deixar de ser a canção possui referencias explicitas ao canibalismo.


Na manhã seguinte, os homens se reúnem e prosseguem seus cantos. Exercitam com a zarabatana e se vangloriam da sua invulnerabilidade mágica proporcionada pela arma, repetindo isso como um mantra de proteção várias vezes seguidas para exorcizar o próprio medo. Logo se põem em marcha  com suas armas. Quando chega a noite silenciosamente se aproximam do inimigo e atacam um pouco antes do alvorecer, quando todos estão adormecidos. Antes de atacar, o chefe passa para todos uma corda feita de cabelos de um morto e lhes passa pela boca e pelo bracelete direito e um rabo de ratazana para inflamá-los ao combate, como ritual de fechamento de corpo, assim pensam melhor ferir os inimigos. Todos se pintam com uma tinta branca na frente e encima do nariz, depois rodeiam a aldeia do inimigo e depois aos gritos de "wai, wai, wai" atacam  primeiro aos homens que dormem e os matam com dardos. Ato seguinte, enquanto gritam "kukukukuku", matam a pau as mulheres e finalmente pegam as crianças pelos pés e arrebentam suas cabeças contra as pedras ou contra o chão. Finalizada a obra homicida, abrem o ventre dos cadáveres e comem um pouco da gordura crua. Logo dão a volta ao redor dos mortos e deixam seus corpos insepultos. Em alguma fonte de água próxima limpam suas lanças e armas do sangue. Os guerreiros jovens bebem a mistura de sangue e água para adquirirem a força do inimigo morto. 


Na Nova Zelândia, os Maioris, temidos guerreiros antropófagos e caçadores de cabeça, tampouco perdoavam aos inimigos vencidos: Quando a linha de defesa do inimigo era rompida e a debandada era geral, um perseguidor veloz podia ferir uma dúzia de fugitivos atemorizados. O objetivo do guerreiro veloz era seguir sem deter-se e enquanto passava correndo pelo oponente lhe desferia um golpe de maça na cabeça ferindo-o, para que os que viessem em sua ajuda pudessem terminar o serviço. Não era difícil acontecer que um guerreiro veloz atravessasse com sua lança a dez ou doze fugitivos, tangidos pelo medo, enquanto outros que vinham atrás matavam o ferido vencido. Os inimigos mortos eram todos devorados. Entre os Maoris as guerras eram motivadas por roubos, vinganças, e outros delitos cometidos entre os grupos inimigos.


Outra prática comum de guerra e resolução de conflitos que chegaram até nós pelos mitos greco-romanos e bíblicos são os combates singulares ou duelos de um ou mais guerreiros que tinham como objetivo reduzir o número de vítimas da guerra. Os povos da Austrália e Nova Guiné conhecem essas batalhas rituais onde uns poucos guerreiros se enfrentam com a assistência de suas mulheres que lhes exortam para o combate e alcançam as armas durante o torneio. São poucas as vítimas mortais e só alguns são feridos, o combate pode ser interrompido a qualquer tempo  para os contendores poderem descansar ou fazer uma refeição e quando uma das facções considera o conflito encerrado pela morte ou ferimento grave de algum guerreiro. O clã vencido ficará devedor do vencedor e aguardará uma nova oportunidade para realizar sua vingança.         


A incursão vingativa, o desbaratamento, a emboscada, o torneio e a festa traiçoeira são as estratégias universalmente consagradas como primárias entre todos os povos antigos estudados pelos antropólogos no que diz respeito a como praticam a guerra. O comportamento bélico de grupos remonta aos primórdios da humanidade como herança cultural adquirida de nossos antepassados caçadores coletores do neolítico e é fruto da sua observação apurada da própria natureza e do comportamento de predadores e presas no ciclo interminável da vida, de nascimento e morte. O comportamento agressivo não deve ser considerado nesse caso como patológico ou imoral, pois é graças a sua existência que foi forjada a civilização humana, com seus bons a maus atributos. O comportamento sanguinário da guerra primária é conveniente para imposição de quadros genéticos dominantes sobre outros numa seleção natural dos mais aptos e a carnificina do massacre buscava eliminar a possibilidade dos vencidos em promover a vendeta em curto espaço de tempo, fato estimulador das contendas, o que nem sempre foi uma estratégia eficiente pois sempre há sobreviventes e a escalada se perpetua de forma cíclica.


Quase sempre depois da guerra vem o canibalismo, mesmo que suas motivações aparentemente sejam variadas. Muitas vezes se considera o morto como presa de guerra e portanto artigo alimentício. Os jalé da Nova Guiné asseguravam aos antropólogos que comiam o inimigo morto pois sua carne é rica, tão rica quanto ao do porco, senão melhor. O cadáver não suscita inibições especiais, a não ser que seja de alguém conhecido. "Não se deve comer as pessoas cujo rosto se conhece". Afirmam eles. Existem exemplos deste comportamento desde a Antiguidade como arquétipo do comportamento humano comum até pouco tempo atrás. Na América do Sul, África, Nova Guiné, Austrália e Oceania tais comportamentos antropofágicos possuem reminiscencias recentes na cultura dos autóctones. Em determinadas condições ambientais onde o alimento é difícil, o canibalismo faz parte do regime alimentar em culturas que carecem da proteína, de grande valor energético, e foi com certeza condição de vida sem mácula no Paleolítico que chegou até nós como tradição de várias culturas humanas no planeta. Outro fator do canibalismo é o processo de vingança, a vendeta permanente, que estimula o comportamento belicoso intergrupal entre uma ou mais tribos e possui, como já vimos, uma complexa interação social. Nas ilhas Salomão a maior humilhação que se podia infligir ao inimigo era devorar seu cadáver. Entre os eipo, nativos da zona ocidental da Nova Guiné, todos os indivíduos eram obrigados a participar da atividade de comer a carne do inimigo morto. Era uma forma de dividir sua culpa entre a comunidade. 


A Odisseia Antropofágica se perde no passado dos tempos, quando a humanidade dava seus primeiros passos nas imensas planícies da pré-história em busca de sustento. A atitude do ser humano frente ao canibalismo como tabu alimentar é recente. Foi difundida por algumas culturas agrícolas nos últimos 8.000 anos. No passado o homem considerava seu inimigo morto como se fosse um pedaço de carne. O homem morto carece de sinais significativos que possam gerar emoções de compaixão. Foram necessários milhares de anos para serem criados tabus, como normas aceitas durante os combates, mas veremos que é fina a camada inibidora que recobre a consciência do homem  moderno e que podem ser ultrapassadas tais inibições em condições extremas com a maior facilidade e sem culpa.                             

Podemos encontrar nos antigos mitos gregos a mesma raiz deste comportamento belicoso em uma cultura que acreditamos estar mais próxima das tradições indo européias que tanto prezamos como herança cultural no Ocidente. No mito de Hipodâmia e os Centauros é registrada a seguinte narrativa: na festa de suas bodas com Pirítoo, numa gruta nas redondezas do palácio os seres multiformes, meio homens meio animais, foram servidos para honrar sua presença aos festejos. Os criados foram instruídos a servir leite aos monstros, mas eles queriam vinho. Não adiantou os rogos dos serviçais de que o vinho não lhes faria bem, já que não estão acostumados a bebida tão forte. Bebendo o vinho exigido aos brados, em largos goles, logo se embriagaram. A festa que era visitada pelos deuses se transformou em uma balbúrdia, com os seres bestiais derrubando os móveis e colocando os convidados em fuga.

Euritião, o mais exaltado de todos vendo a beleza pura da noiva, atira-se sobre ela arfando de desejo. Prendeu com suas mãos seus longos cabelos. Hipodâmia em choque gemeu de dor e medo. Tentando fugir do monstro ela tropeçou e caiu. Seu rosto sangrou. O centauro insaciável se atirou sobre ela. A noiva mal conseguia gritar por socorro. Seu corpo está cheio de feridas da luta contra o monstro. Os outros centauros aplaudem enquanto Euritião mais uma vez possui Hipodâmia.

Pirítoo com a ajuda de Teseu que fazia parte como conviva da festa se atira contra o monstro. Enquanto Teseu luta contra o violador, Pirítoo retira a noiva, já desfalecida, e leva-a até os braços de Butes, o pai. Compadecido pela violência cometida contra a filha, Butes, limpa-lhe as feridas e tenta reanimá-la.

Ao retornar ao campo de batalha, enlouquecido pelo desejo de vingança, sua surpresa é maior ao perceber a debandada dos inimigos. Enquanto isso Euritião geme desesperadamente: Teseu arrancara-lhe as orelhas.

No que seria seu quarto de núpcias a noiva se contorce com longos pesadelos. Enfim Pirítoo compreende. Foram Ares, o deus da guerra, e Éris, a discórdia, que, por não terem sido convidados às bodas provocaram aquela calamidade. Eles estimularam os centauros a beber para deflagrar o sangrento conflito.

Vitoriosos neste primeiro embate, os lápitas cantam seus hinos de guerra. Em suas cavernas os vencidos se embriagam. Teseu os expulsa do monte Pélion, vão para o país dos áticos, próximo ao monte Pindos. Exausto pela batalha, Teseu adormece pesadamente. Os centauros reagrupam suas forças e marcham contra seus inimigos enquanto os lápitas ainda estão imersos em seus cânticos, e seu rei Butes e Pirítoo, o pretendente, ainda chocados pelos acontecimentos não tem forças para reagir.

No palácio de Butes, Hipodâmia ri e canta enlouquecida. Pirítoo sem ação e cheio de compaixão olha a noiva a vagar pelos bosques. O rei Butes chora desolado sua tragédia.

Os centauros atiram-se sobre os lápitas, que desprevenidos e sem comando são facilmente vencidos e desbaratados. Dizimados fogem para Fóloe e Elis, mas os seres multiformes perseguem-nos e novamente os vencem tomando Fóloe.

Vitoriosos escravizam o povo da região e começam a erguer os muros defensivos da nova cidade. Enquanto isso os lápitas sobreviventes só pensavam na vingança. Em Fóloe o muro cresce com a mão de obra da população que os centauros escravizaram. Palácios em honra aos monstros são construídos. É a vitória da violência sobre a paz.

Este mito esconde alguns fatos históricos conforme dizem os estudiosos. Centauros parece significarem “bando de cem guerreiros” e lápitas, “os que quebram pedras de fogo”. Eram dois povos autóctones que provinham da época neolítica e por milênios sobreviveram isolados nas montanhas da Tessália e também na região pastoril da Arcádia. Entre eles as lutas eram constantes pelos domínios dos pastos. O desentendimento foi aproveitado pelos helenos invasores, que se aliaram primeiro aos lápitas e depois aos centauros. Os lápitas, segundo se diz, tinham um índice de civilização mais avançado que os centauros. Estes últimos viviam uma vida pastoril e seus rebanhos lhes ofereciam os alimentos básicos: leite, queijo e carne. Descendentes de pastores nômades viviam em contato direto com a natureza.

O mito das bodas de Hipodâmia sintetiza o conflito entre esses dois povos, o rei dos lápitas convidara os centauros para o banquete de núpcias. Desacostumados com o vinho que não cultivavam se excederam na bebida, embriagaram-se e começaram a criar brigas entre os convidados. Um deles tentou violar a noiva, talvez tentando alegar um antigo costume de seu povo. Os outros apoiaram-no.

Desse incidente ocorrido na festa tribal entre os dois povos, originou-se um combate, transformado em longa guerra de incursões, acontecimento que pode ser lendário ou não. A concorrência pelo meio ambiente, neste caso pelas pastagens férteis, na verdade deve ter sido o fato que impulsionou as disputas entre os dois povos.

Nesta guerra os centauros levaram a melhor. Porém sua vitória não é definitiva. Os dois povos se digladiaram numa guerra antropofágica de extermínio. Ambos ficaram tão fracos que foram dominados aos poucos pelos helenos invasores. Sua existência foi aos poucos transformada em simples expressão mítica.

Os mitos sobre centauros que incluem outros heróis como Hércules e Aquiles, expressam as dificuldades da luta dos gregos contra este povo resistente das montanhas. Apesar de enfraquecidos pelas guerras com os lápitas, estavam acostumados a lutar em terreno de difícil acesso. Os gregos devem tê-los subjugado ao fim de muitas lutas pela assimilação ou extermínio. Os mitos expressam sua vitória, não apenas pelas armas, mas da superioridade dos costumes helenos sobre um povo que extinguiram por considerarem bárbaros.


Da mesma forma os tupis foram levados pela sua cultura às guerras entre as tribos e nunca conseguiram estabelecer uma frente única contra a invasão de seu território pelos canibais brancos que devoravam terras e gentes, invasores descendentes desses indo-arianos primordiais que ocuparam grandes áreas na Europa e já tinham destruído, assimilado, ou canibalizado os povos autóctones daquele continente há milênios. Frank Lestrigant comenta em sua obra "O Canibal" qual era o imaginário preponderante na Europa na época das "Grandes Descobertas": "Os ferozes caribes aí (na obra de Rabelais Gargantua) são representados como guardiões de tesouros inestimáveis. Algumas de suas ilhas são feitas todas de ouro, ou pelo menos seu solo abriga 'mais ouro do que terra', como crê o almirante (Colombo). Desde então, a gestão colombina de 1492-1493 inscreve-se na tradição maravilhosa do conto. (...) o objetivo da busca é o de arrancar a agressores, meio homens, meio feras, e ao preço de sucessivos desafios um objeto que conferirá ao herói, assim qualificado, poder e riquezas. A proeza desde então autoriza, ao mesmo tempo que o objeto simbólico - ouro, pérolas e pedras preciosas - , a eliminação física do adversário, o caraíba execrável, apresentado como detentor ilegítimo desses tesouros, ou pelo menos sua redução à servidão. (...) Os cálculos sórdidos do almirante que vendeu, em seu regresso, centenas de prisioneiros caribes para obter em troca sementes e animais de carga estão, certamente, longe do pensamento de Rabelais. Dentro do contexto das "Grandes Descobertas", (no imaginário de) Rabelais e depois Colombo, (de fato) 'canibaliza' os canibais e seus fabulosos tesouros".


Com seu relato Hans Staden, este artilheiro europeu, soldado da fortuna, certamente atraído pelos mitos criados na europa sobre as riquezas ocultas dos selvagens, em busca de melhores condições de vida e salário regular no Novo Mundo, servindo alhures de sua terra natal, não deixou de demonstrar seu preconceito e terror ante este tipo de luta antropofágica característico dos caçadores coletores. Para este soldado católico não ocorria pensar que os conquistadores de terras do além mar haviam justamente aproveitado as desavenças dos autóctones, suas guerras por territórios de caça, para saquear as riquezas recém descobertas em nome de uma civilização que se debatia na Europa em guerras ancestrais tão ou mais sangrentas do que as promovidas pelos tupinambás e seus vizinhos. Quem é o antropófago e quem é a presa? Anos de dominação, genocídios premeditados e expulsão permanente iriam provar que estes homens brancos com suas barbas longas e maneirismos, cheios de dogmas religiosos restritivos de comportamento, de sexualidade reprimida e higiene questionável eram na verdade os verdadeiros canibais de terras e gentes.

Podem as modernas sociedades adotarem uma paz perpétua? Perguntam os pesquisadores do comportamento humano. Como despojar a espécie humana de um inconsciente coletivo de disputa pelo meio ambiente e suas riquezas presente até mesmo em suas atividades mais inocentes como as práticas de jogos ensinadas para as crianças desde a mais tenra idade.

Jung buscou desvendar os segredos do lado sombrio da humanidade: “Da mesma forma que o homem tem um corpo, que em principio não se distingue de um corpo animal, assim também sua psicologia tem certos andares inferiores, em que moram ainda os espíritos de épocas passadas da humanidade, como também almas animais do tempo do Anthropopithecus, além das “psiques” dos sáurios de sangue frio, e nas partes mais profundas ainda o que há de transcendentalmente incompreensível e paradoxal nos processos psicóides de fundo simpáticos e parassimpáticos”. ( Mysterium Coniunctionis - Vol I – Pág. 204-205)


Anota Freud, no texto “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, que o homem primitivo não temia a morte, simplesmente a levava a sério, seja a sua própria morte, a de seus entes queridos ou a de seus inimigos. Viviam perigosamente, sem medo da vida, a qual era liberada pela crença na imortalidade ou na interdição do assassinato. Se alguém cometesse um crime, submetia-se a provas expiatórias, a fim de purificar-se e proteger-se do retorno dos espíritos vingativos das vítimas.

Com isso, conjuravam ao mesmo tempo o perigo da morte banal e do assassinato fútil. Como resultado, mitigava-se sobremaneira o remorso e a culpa, dando vazão a uma vida com um mínimo de recalque das pulsões agressivas. Assim, as guerras entre tribos exerciam uma função social de equilibrar as tensões tanáticas entre as comunidades e dentro delas.

Por outra parte, em oposição a ideia "primitiva",  a atitude dos civilizados hoje para com a morte é marcada pelo horror de desaparecer, sem ter vivido e experimentado a felicidade duradoura. Caminhamos em pânico para o desaparecimento, com o espírito tomado de neuroses, dopados pelo narcisismo e cegos diante da catástrofe iminente. Como observou Jonathan Swift, famoso escritor Irlandês conhecido por sua análise mordaz da condição humana: “os homens estão sempre a fantasiar-se para impressionar os outros, e podem chegar a crer, como alguns sistemas tradicionais de pensamento, que o universo em sí não passa, também, de uma vasta roupagem e que, portanto, haverá alguma outra coisa escondida debaixo dela. Quanto às aquisições da mente humana, Swift pergunta: “Não é a religião um manto; a honestidade um par de sapatos, desgastados na poeira; o amor próprio um sobretudo; a vaidade, uma camisa; e a consciência um par de calções, que, embora cubra tanto a luxúria quanto a improbidade, pode ser facilmente removido a serviço de ambas?”

“...uma vez que o primitivo “bestial” jaz adormecido em cada um e pode ser acordado pelas pombas de Diana” (Carl Jung – pág. 50 – Misterium Connuctios )


Guerra e Meio Ambiente – A Ilha da Páscoa.



Um ponto perdido em meio ao Oceano Pacifico, a mais de 3500 Km da América do Sul e a quase 5000 Km da Nova Zelândia, a ilha da Páscoa é um dos lugares habitados mais diminutos do planeta. Um triangulo de vulcões extintos de cerca de 180 Km². Apesar de seu isolamento em tempos remotos foi colonizada por povos polinésios que viviam nas ilhas compreendidas entre o Havaí e a Nova Zelândia distantes milhares de quilômetros umas das outras e centenas de anos da data da primeira colonização. Seus navegadores em embarcações de pequeno e médio porte empreenderam grandes navegações colonizando 38 arquipélagos e ilhas maiores espalhadas numa área de 50 milhões de quilômetros quadrados do Pacifico. A similaridade cultural destes povos: seus costumes, instituições sociais e língua comum garantem sua identidade cultural de forma insofismável.

Sua estrutura social é baseada numa teocracia onde o chefe, que se acredita descendente dos deuses, acumula as funções de sumo sacerdote. Nesta função ele intermedia, através do seu mana, as relações entre seus deuses e os homens propiciando a fartura dos frutos da terra e do mar, o que lhe dá o direito sagrado (tapu ou taboo) sobre as riquezas da terra, dos pesqueiros e de seus produtos. Esta estrutura em condições normais de sobrevivência proporcionava relativa estabilidade e paz entre seus integrantes, os clãs que compunham a comunidade de ilhéus.

Quando a superpopulação prejudicava a sobrevivência da comunidade, o que acontecia com freqüência mesmo com controle de natalidade, estímulo à emigração e a prática de infanticídios, e quando infortunadamente também não existiam ilhas próximas ou conhecidas para colonizar, podia chegar o momento que a terra tornada infértil pelo seu uso constante e a escassez do pescado provocada pela exploração prolongada dos recursos gerava um sério dilema.

A comunidade até então pacifica passava a questionar o Mana do chefe e caso não fosse um guerreiro notável sua liderança poderia ser desrespeitada. Guerreiros que não faziam parte do clã do chefe armados de porretes (toa – como eram chamados ) rompiam seus tabus movidos pela necessidade e criavam subclãs expulsando de seu território os clãs antes dominantes.

Nesta situação incorreram os ilhéus da Ilha da Páscoa que chegaram aproximadamente no séc. III ao local, distante 1700 km de mar aberto do lugar habitado mais próximo, fundaram suas colônias trazendo seus alimentos básicos: batata doce, banana e cana de açúcar, limparam o terreno entre os três picos, pescaram e caçaram aves marinhas. A partir do ano 1000, uma população que nunca excedeu a mais de sete mil almas esculpiram e ergueram mais de trezentas estatuas gigantes com a altura de cinco homens que instalaram nas plataformas de templos durante um período de setecentos anos. Já no séc. XVI, os ilhéus criaram uma escrita, fato incomum entre os polinésios que utilizam geralmente a memória oral transmitida pelos sacerdotes, que acredita-se passaram a usar para gravar suas tradições e genealogias. Este foi o auge de sua cultura.

Então imperceptívelmente as condições ambientais daquele habitat que sofria pela presença humana foram se modificando. A população humana crescente foi aos poucos destruindo seu meio ambiente, as florestas foram destruídas pelos homens reduzindo o regime de chuvas e comprometendo as plantações. Com menos madeira a construção de canoas ficou prejudicada e a colheita dos frutos do mar já não atendia a necessidade dos ilhéus. Dois clãs dominantes ocuparam lados opostos da ilha e o mana do chefe não mais infundia respeito. Com lanças de obsidiana mortais os guerreiros chamados “os homens com as mãos sangrentas” se enfrentavam pelo controle dos recursos que tinham restado. Eles competiam para ver quem descobria primeiro um ovo de andorinha-fusca-do-mar ganhando como premio a chefia por apenas um ano. Após quase sua extinção os últimos sobreviventes que já haviam perdido o conhecimento de sua escrita, através da tradição oral relataram aos europeus a fase decadente de sua sociedade confirmada pelos indícios arqueológicos e antropológicos achados posteriormente. De suas antigas estatuas muitas foram derrubadas pelos revoltosos outras foram deixadas sem lapidar pela metade na rocha abandonadas abruptamente.


Na falta de suas antigas fontes de carne animal, esgotadas pelo excesso de exploração, os insulares buscaram a fonte mais abundante e até então tabu: humanos, cujos ossos foram quebrados e consumidos até o tutano conforme foram encontrados em pilhas de restos de alimentação do período tardio. Suas tradições orais estão repletas de relatos de antropofagia. O maior insulto que se podia dizer ao inimigo era: "A carne de sua mãe ainda está presa entre meus dentes". 


O canibalismo gerado pela guerra endêmica em função do controle dos recursos naturais da ilha dizimou sua população que na chegada dos europeus no séc. XVIII cujo contato inicial já antes havia causado mais mortes por doenças e escravização não passavam de 111 habitantes. Na busca de se proteger dos efeitos da guerra famílias haviam construído nas cavernas de lava abrigos para sua proteção fechando com pedras polidas tiradas dos templos as suas aberturas. Foi escavada na península de Poike uma vala visando isolá-la do resto da ilha numa desesperada estratégia defensiva. Imagina-se pelo baixo índice populacional encontrado e a produção em massa da nova lança de obsidiana que tenham tentado uma batalha decisiva que basicamente levou-os à extinção de sua cultura e de suas vidas.


Anazasis - O Povo Antigo


Na América do Norte, no sudoeste onde hoje existe o estado do Novo México habitaram povos que  em comum com os pascoanos sofreram grande extinção em função de colapsos ambientais. Após longos períodos de prosperidade e crescimento populacional baseados numa economia agrícola em terreno pouco fértil sofreram com as variações sazonais entre fartura e escassez. 


Num período que compreende de 1130 d. C. até 1400, portanto antes da chegada de Colombo, povos denominados anazasis (os antigos), mimbres, hohokan, kayenta e mogollon habitaram extensos territórios em áreas hoje desérticas que são protegidas por reservas nacionais. As causas aventadas pelos arqueólogos e antropólogos sobre a extinção desses grupos evocam danos ambientais, desmatamento e o mau uso dos recursos naturais existentes pelo impacto da ocupação humana. Mudanças climáticas provocadas pelo desmatamento, guerras decorrentes da escassez de alimentos e conseqüente recurso final ao canibalismo seguiram uma seqüencia natural dizem os estudiosos.


A exploração dos recursos naturais visando lucros imediatos em um meio ambiente frágil para a cultura de plantio foi a causa principal da extinção desses grupos humanos, semelhante ao que ainda ocorre hoje em dia em algumas regiões do planeta. A  escassez de alimentos provocou uma mudança drástica de seus costumes e valores conforme sua sociedade foi declinando, condenadas  à miséria e fome. 


Com uma agricultura que dependia de técnicas conforme a topografia da região, utilizavam para irrigação a proximidade de áreas de plantio com os lençóis freáticos, ou ocupavam locais elevados onde as chuvas eram mais intensas mas que sofriam perdas quando ocorriam baixas temperaturas, ou plantavam em baixios, dependentes da precipitação pluviométrica incerta e que obrigava a construção de canais de irrigação. Um desses canais chegou a atingir 19 quilômetros de comprimento, tendo o principal 24 metros de largura e 5 metros de profundidade. Os problemas decorrentes da irrigação ocorriam quando grandes quantidades de chuvas inundavam os campos e escavam as valas e canais aprofundando-os e nivelando a água residual abaixo do campo de cultivo tornando a irrigação impossível para comunidades que não dispunham de tecnologia para o bombeamento da água nas plantações. Chuvas em excesso podiam destruir as represas de contenção e transbordar os canais, ocorrências naturais para os que viviam nas planícies.


Aqueles que utilizavam os lençóis freáticos em períodos quando o clima da região favorecia, pelo aumento da umidade do terreno, eram tentados a expandir seus cultivos em décadas favoráveis, para áreas marginais com menos fontes e depósitos subterrâneos confiáveis. O crescimento populacional gerado pelos períodos de prosperidade obrigava ao aumento da produção de alimentos e quando retornava o período seco esse crescimento populacional de indivíduos prejudicava suas condições de subsistência e gerava conflitos, pois as áreas naturalmente irrigadas pelos lençóis subterrâneos não podiam suprir alimentação para toda a comunidade.


A perda da cobertura vegetal de florestas próximas, exploradas de forma intensiva pelos indígenas, eliminou mais uma fonte de alimentação que eram os pinhões, como também forçou os habitantes a procurarem outras fontes de madeira em locais distantes, para a construção de suas complexas habitações de alvenaria com estrutura de madeira. Sem animais de tração foram obrigados a trazer cerca de 200 mil toras, cada uma pesando até 320 quilos, de regiões montanhosas que ficavam distantes 80 quilômetros e plantadas em altitudes de até centenas de metros de suas localidades.


Com o advento da fome provocada pelos longos períodos de seca, sua estrutura política e social baseada na coleta de mantimentos pelos chefes que nada tinham para trocar a não ser garantir através das crenças do povo na fertilidade da terra e no sucesso da agricultura as cerimônias aos seus deuses, desmoronou, e os conflitos e levantes tornaram-se comuns entre os habitantes dos povoados próximos. Povoados construídos posteriormente no topo de penhascos, muros defensivos, fossos e torres de observação, aldeias incendiadas e corpos insepultos, crânios escalpelados, e esqueletos com flechas em seu interior foram as marcas deixadas da desorganização que se seguiu no declinar dessas comunidades agrícolas com seus problemas ambientais e populacionais.


Os sinais de canibalismo entre as comunidades anazasis relacionados a guerra, são característicos do desespero comum provocado pela fome, e transcendem a antropofagia ritual comum à cultura dos ameríndios da América do Sul. São eventos comuns associados às guerras de todos os tempos e aos desastres naturais quando o ser humano fica forçado pela fome ao consumo da carne de seu próximo. Em um sítio escavado por arqueólogos, o conteúdo de uma habitação foi destruído, e os ossos de sete pessoas foram encontrados espalhados dentro da casa, o que sugere que foram trucidados em um ataque, já que não houveram preocupações fúnebres com seus despojos. Os ossos estavam quebrados como os de animais que tiveram o tutano extraído. Outros ossos estavam amolecidos nas extremidades como se tivessem sido fervidos em panelas. As próprias panelas continham dentro delas resíduos de fibras musculares humanas. Os sinais mais contundentes de canibalismo nesse sítio é que as fezes humanas encontradas na lareira da casa, ainda bem preservadas pelo tempo seco após quase mil anos, revelaram conter proteína de músculo humano que inexiste em fezes normais. Com certeza os ocupantes consumiram as carnes de suas vítimas.


Após um período de três anos de seca consecutiva, conforme as evidências arqueológicas encontradas, a escassez de alimentos levou ao desespero essas comunidades. O milho estocado não sobrevive por mais tempo, mesmo com o tempo seco, suas povoações foram aos poucos abandonadas, evacuações planejadas ocorreram, mas também estouraram conflitos. Esses povos viveram ali durante 600 anos, tempo superior ao da ocupação européia do Novo Mundo. A complexidade e interdependência de suas sociedades foram seu calcanhar de aquiles que, sob condições adversas, foram a causa do seu declínio e extinção.                            

A guerra é arquétipo do homem, mas diferente do que imaginavam seus estudiosos Machiavel e Clausewitz, não são uma extensão da política, mas a extinção da mesma quando são os recursos naturais que estão em jogo. Com o planeta chegando a casa dos 7 bilhões de habitantes nas próximas décadas a ameaça se mostra presente nos conflitos de baixa intensidade que infestam o planeta. Sobre as mais diversas justificativas religiosas e políticas, o homem promove conflitos pelo espaço vital, pela comida, pela água potável, pela energia em todas as latitudes do mundo. O exemplo da Ilha da Páscoa e dos anasazis da América do Norte deve ser bem entendido.

Ilha Hispaniola - Genocídio dos "Canibais"


Enquanto os pascoanos tentavam sua batalha decisiva em sua ilha e anteviam o fim de seu mundo no meio do Pacifico, do outro lado do globo o Novo Mundo era “descoberto” e os altos valores morais cristãos dos espanhóis iam sendo transmitidos pela espada aos autóctones que habitavam a Ilha Hispaniola local da chegada de Colombo, que foi recebido como deus pelos inocentes indígenas. Frei Bartolomé de Las Casas relata em seu livro “O Paraíso Destruído” quão altruísta foram os ensinamentos dos conquistadores que era como gostavam de serem chamados os espanhóis:

“Na ilha Espanhola, (Onde hoje se localiza o Haiti e a Rep. Dominicana) que foi a primeira, como se disse, a que chegaram os espanhóis, começaram as grandes matanças e perdas de gente, tendo os espanhóis começado a tomar as mulheres e filhos dos índios para deles servir-se e usar mal e a comer seus víveres adquiridos por seus suores e trabalhos, não se contentando com que os índios de bom grado lhes davam, cada qual segundo sua faculdade, a qual é sempre pequena porque estão acostumados a não ter de provisão mais do que necessitam e que obtém com pouco trabalho. E o que pode bastar durante um mês para três lares de dez pessoas, um espanhol o come ou destrói num só dia. Depois de muitos outros abusos, violências e tormentos a que os submetiam, os índios começaram a perceber que estes homens não podiam ter descido do céu. Alguns escondiam suas carnes, outros suas mulheres e seus filhos e outros fugiam para as montanhas a fim de se afastar dessa Nação. Os espanhóis lhes davam bofetadas, socos e bastonadas e se ingeriam em sua vida até deitar a mão sobre os senhores das cidades. E tudo chegou a tão grande temeridade e dissolução que um capitão espanhol teve a ousadia de violar pela força a mulher do maior rei e senhor de toda esta ilha. Cousa essa que desde este tempo deu motivo a que os índios procurassem meios para lançar os espanhóis fora de suas terras e se pusessem em armas: mas que armas? São tão fracos e de tão poucos expedientes que suas guerras não são mais que brinquedos de crianças que jogassem com canas ou instrumentos frágeis. Os espanhóis com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas sobre quem de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente ou mais destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe. Arrancavam os filhos dos seios da mãe e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto que outros os lançavam às águas dos córregos rindo e caçoando, e quando estavam na água gritavam: move-te, corpo de tal?! Outros, mais furiosos, passavam mães e filhos a fio de espada. Faziam certas forcas longas e baixas, de modo que os pés tocavam quase a terra, um para cada treze, em honra e reverência de Nosso Senhor e de seus doze Apóstolos (como diziam) e deitando-lhes fogo, queimavam vivo todos os que ali estavam presos. Outros, a quem quiseram deixar vivos, cortaram-lhes as duas mãos e assim os deixavam; diziam: Ide com estas cartas levar as notícias aos que fugiram para as montanhas. Dessa maneira procediam comumente com os nobres e os senhores; faziam certos gradis sobre garfos com um pequeno fogo por baixo a fim de que, lentamente, dando gritos e em tormentos infinitos, rendessem o espírito ao Criador”.

“Eu vi uma vez quatro ou cinco dos principais senhores torrando-se e queimando-se sobre estes gradis e penso que havia mais dois ou três gradis assim aparelhados; e pois que estas almas expirantes davam grandes gritos que impediam o capitão de dormir, este último ordenou que os estrangulassem; mas o sargento, que era pior que o carrasco que os queimava (eu sei seu nome e conheço seus parentes em Sevilha), não quis que fossem estrangulados e ele mesmo lhes atochou pelotas na boca afim de que não gritassem, e atiçava o fogo em pessoa até que ficassem torrados inteiramente e a seu bel prazer. Eu vi as cousas acima referidas e um número infinito de outras; e pois os que podiam fugir ocultavam-se nas montanhas a fim de escapar as estes homens desumanos, despojados de qualquer piedade, ensinavam cães a fazer em pedaços um índio à primeira vista. Estes cães faziam grandes matanças e como por vezes os índios matavam algum, os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a qual por um espanhol morto fazia morrer cem índios”.

Quem é o canibal? As ilhas do Caribe foram “limpas” pelos espanhóis e outros povos que “colonizaram” estas terras. Os indígenas sofreram seu holocausto particular ao ponto de, segundo o relato do Frei, acabar completamente extintos nas ilhas onde antes viviam em paz. Suas formações de batalha, acostumados às guerras rituais onde poucos pereciam não eram páreo para a truculência dos europeus famintos de sangue e sua cavalaria. Matar mulheres e crianças era incompreensível para estes nativos que procuravam apaziguar os invasores de quando e vez dando o pouco que tinham e de tais monstros só lhes despertavam cada vez mais e mais a cobiça.

O lebréu, um mastim caçador adestrado pelos assassinos buscava nas matas os fugitivos e matava sem distinção crianças, mulheres ou velhos. Tinham os espanhóis mais estima pelos seus cães de massacre do que pelos seres humanos que quando não passavam ao fio de espada exploravam sua mão de obra até seu extermínio. E como justificativa usavam sua religião deturpada de antropófagos para todo tipo de crime cometer.

Deitar as carnes de índigenas vivos para seus cães torna os espanhóis melhores por não consumirem diretamente o botim? Só uma sociedade reprimida imaginaria tamanha selvageria sem sentido. Mas é evidente que sempre nos deparamos com a questão alimentar como fator emulador destes povos que viviam na europa onde o alimento da terra era escasso em comparação com a bruxuleante natureza tropical. Não fosse o roubo das matrizes genéticas destes alimentos descobertos em terras de Novo Mundo na Europa seus habitantes passariam fome até hoje.

Outro fator que chama a atenção é a forma distorcida quase blasfema que os conquistadores pensavam a própria religião, pois interpretavam ao seu modo em sua cruzada brutal o exterminio desses povos como uma luta da fé contra a ignorância. Assim pensavam todos os conquistadores desde os Assírios cujos monarcas se auto intitulavam os “Senhores dos Quatro Cantos” e acreditavam estar levando a luz até os povos dominados. Esta é uma das características do pensamento antropofágico pois justifica o sacrifício de tantos em prol de uma fé qualquer. Vejam o que escrevia Gonzalo Fernandes de Oviedo o historiador oficial da época:

“O almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha de Espanhola, um milhão de índios e índias (...) dos quais, e dos que nasceram então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, quinhentos, incluindo tanto crianças quanto adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios (...) Alguns fizeram esses índio trabalhar excessivamente. Outros, não lhes deram nada para comer, como bem lhes convinha. Além disso, as pessoas desta região são naturalmente tão inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza que vários índios, por prazer e passatempo, deixaram-se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram...Quanto a mim, eu acreditaria antes que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas, que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre...”

Esta era a desculpa para praticar o genocídio consciente de milhões de pessoas que inicialmente receberam de forma pacífica seus conquistadores, com oferendas e préstimos. Deus teria decidido que aquela terra não era deles e portanto poderiam ser escravizados e mortos. Nota-se que até mesmo o relato oficial não poderia deixar de mencionar alguns dos constrangimentos e violências cometidas justificadas ao fim como um mandato de Deus.

Com a eliminação da mão de obra barata e o esvaziamento das ilhas caribenhas de seus moradores originais um novo tipo de comércio foi estimulado. Aproveitando os costumes milenares dos africanos de escravização, contingentes de negros foram trazidos da África em condições subumanas para preencher as vagas nas minas e plantações deixadas pelos índios que passaram a possuir a fama em todo o continente americano de pessoas que não são afeitas ao trabalho por não se adaptarem a selvageria de seus “donos” europeus. Mas isto veremos com atenção mais adiante.

Quando Gonzales menciona que estes povos eram: “corruptos, inúteis, de pouco trabalho, melancólicos, sujos, e mentirosos”, praticava um exercício de retórica por má fé ou por ignorância, projeção, com certeza, dos defeitos conhecidos e pertencentes dos mesmos conquistadores em relação aos conquistados que passaram por uma manobra de propaganda oficial a carregar os atributos de seus algozes tão ao gosto dos colonizadores e utilizado por séculos e surpreendentemente ecoam até nossos dias, mas não resistem a uma crítica ou levantamento de pesquisa mais acurada.

Os bárbaros sempre são os outros, nenhum povo assume sua condição de barbárie de forma consciente. Polifemo, o ciclope que tantos problemas trouxe ao herói Ulisses quando aprisionou ele e sua tripulação em sua caverna é exemplo da barbárie que os gregos atribuíam aos outros seres e a antropofagia era o exemplo deste comportamento.

Voltaire, conhecido enciclopedista e filósofo, no verbete intitulado antropofagia trás alguma luz ao assunto que causava furor à época por tratar-se de tabu entre os europeus: “os ciclopes não eram os únicos na antiguidade que se alimentavam às vezes de carne humana. Juvenal ( Poeta latino ) conta que entre os egípcios – este povo tão sábio, tão renomado por suas leis, este povo tão piedoso que adorava cebolas e crocodilos – os tintiritas comeram um dos seus inimigos que caíra em suas mãos; não relata este fato por ter ouvido contar, pois este crime foi cometido quase sob seus olhos; ele estava então no Egito e a pouca distancia de Tintiro. Lembra, ao relatar o caso, os gascões ( antigo povo que habitava a Gasconha, região sudoeste da França ) e saguntinos ( habitantes de Sagunto, aglomerado urbano próximo à Valencia na Espanha ) que outrora se alimentaram da carne dos próprios compatriotas”.

“Nos tempos que uma região era pouco povoada, os homens tinham pouca arte, eram caçadores. O hábito de se alimentarem daquilo que matavam facilmente os levou a tratar seus inimigos como tratavam os cervos e javalis. Foi a superstição que induziu a imolar vitimas humanas, foi a necessidade que levou a comê-las” - Pensava o filósofo.

“Qual o crime maior?” – Ele questiona: “reunir-se piedosamente para cravar uma faca no coração de uma jovem ornada de faixas, em honra da divindade, ou devorar um pobre homem que matamos em legitima defesa?”

Entretanto temos mais exemplos de meninos e meninas sacrificados que de meninos e meninas devorados; quase todas as nações conhecidas sacrificaram jovens. Os judeus os imolavam. Isto era chamado o Anátema; era um verdadeiro sacrifício e é estabelecido no capítulo 27 do Levítico, que não sejam poupadas as almas vivas votadas ao sacrifício, mas em nenhuma passagem está prescrito comer suas carnes; tratava-se apenas de uma ameaça; e como já vimos, Moisés diz aos judeus que, caso não observassem as cerimônias, não só seriam acometidos de sarna como as mães comeriam seus próprios filhos. É verdade que na época de Ezequiel os judeus deviam estar habituados a comer carne humana, pois ele lhes prediz, no capitulo 39, que Deus os fará comer não apenas os cavalos de seus inimigos, mas tambem os cavaleiros, e outros guerreiros. (...) Com efeito, por que os judeus não teriam sido antropófagos? Teria sido a única coisa que faltava ao povo de Deus para ser o mais abominável povo da Terra”.


 Como disse Javé a Moisés: “Consagrai a mim todos os primogênitos. Qualquer um que abra um ventre entre os filhos de Israel, seja de mulher, seja de animal, esse é meu”. Os filhos podiam ser resgatados pelo preço de um cordeiro, ou pela circuncisão, que era o sinal da aliança riscado na carne. A despeito disso, a prática de ofertar crianças ao deus pelo fogo ressurgiu entre os judeus de tempos em tempos, e foi conservada entre os amonitas. Seu deus, uma estatua oca com cabeça de bezerro, era naturalmente Moloch (deformação de Melec= Rei) , em cuja boca ardente ou em seus braços de bronze em brasa como querem alguns, bebês eram lançados vivos para aplacar a divindade, ritual que ainda existia na época do reinado de Salomão, Ajaz e Manasés. (II Reis XXXIII, 10.) Seu santuário estava situado no vale de Hinnomm, ao leste de Jerusalem e foi finalmente destruído por Josias. Este culto os hebreus trouxeram consigo em sua peregrinação pelo deserto até seu estabelecimento na Palestina.

Independente de certo viço antissemita comum na Europa da época nesses comentários de Voltaire, que iria resultar dois séculos depois em uma grande matança de cunho etnicida e antropofágico que os judeus denominaram com muita razão de holocausto, podemos encontrar de fato nos textos bíblicos passagens que iriam envergonhar qualquer defensor de direitos humanos da atualidade e talvez explicar acontecimentos históricos sangrentos posteriores ocorridos pela influencia e inspiração do fanatismo religioso característico dos seguidores de fé monoteísta e de raiz abramica, o núcleo embrionário do pensamento da Guerra Santa.

Vejamos primeiro ao que se refere Voltaire em relação às profecias de Ezequiel, capitulo 39, versículos 17 -20, que conforme o Velho Testamento comia excremento junto com a farinha de seu pão por ordem de Javé: “podereis comer carne, beber sangue, comer carne dos guerreiros, beber o sangue dos principes da Terra: são carneiros, cordeiros, bodes, touros, são animais gordos de Bashan. Podereis comer gorduras à saciedade, beber sangue até a embriaguez: é o sacrifício que faço para vós. A minha mesa vos saciareis com a carne dos cavalos e dos animais de tração, dos animais de todos os guerreiros, oráculo do Senhor Deus”.

O que Voltaire talvez inferisse é que todo ritual de sacrifício de sangue feito com o holocausto de vitimas humanas provem de um passado de antropofagia que foi sendo ritualizado com o tempo até transformar-se em cerimônia de cunho sacerdotal e propiciatório dos favores divinos. Até hoje nas antigas religiões afrodescendentes o Ebó, ou seja o fruto de sacrifício de animais e cereais dedicado ao Orixá é depois consumido pelos crentes convivas. O mesmo sucedia nos antigos sacrifícios adivinhatórios de leitura de entranhas de animais pelos latinos, a carne do animal abatido era depois consumida pelos sacerdotes. A palavra ovelha derivou do latim Óbulum, que significa oferenda no sentido sacrificial. Foi o animal escolhido por Deus para substituir a vitima que deveria ser imolada segundo o Velho Testamento.

É no texto da Bíblia que podemos encontrar mais exemplos de como o arquétipo humano da guerra evoluiu dos antigos hábitos antropofágicos dos povos na antiguidade. Os hebreus quando de sua chegada à terra de Canaã vieram como bandos de nômades invasores que habitavam o deserto e segundo diz o texto em Josué 6, por inspiração de um anjo guerreiro, uma transfiguração do próprio Javé, que trazia na mão uma espada nua, após seus guerreiros cruzarem o rio Jordão e com o auxilio de uma prostituta que vivia na cidade e de dois espiões que havia enviado com antecedência atacaram impiedosamente Jericó uma cidade estado com população estimada de 3000 almas, e: “Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens quanto mulheres, tanto meninos quanto velhos, também bois, ovelhas e jumentos” por inspiração de Javé. (Versículo 21)

Jacó luta com o Anjo, emanação do prório Javé - Dessa passagem bíblica conta-se que ele foi denominado Israel, isto é, Aquele que Luta contra Deus



Quando suas tribos iam para a guerra, seus sacerdotes pronunciavam imprecações terríveis contra os inimigos, na vitória os pertences dos vencidos e suas vidas eram consagrados ao deus mediante sua destruição, o que denominavam "herem", isto é, os objetos e pessoas tinham se transformado em tabú.  Na tomada de Jericó foi traçado um círculo mágico ao redor da cidade que teve suas muralhas derrubadas pelos "sortilégios divinos" do toque de trombetas. Apesar da pobreza desses exércitos de semi-nômades, os hebreus não se apropriavam dos despojos da batalha, nem reduziam os moradores à escravidão; por ordem de Javé eles aniquilaram tudo, pessoas e coisas. Quando um dos seus esconde alguns pertences e é descoberto, ele é queimado junto com sua família na própria tenda. Logo esses rituais de antropofagia foram atenuados pela cobiça e o bom senso, os objetos de metal foram perdoados, e para serem purificados eram passados pelo fogo e pela àgua. Assim fez o rei Saul muito depois, quando subverteu a ordem dos sacerdotes oferecendo ele mesmo holocausto antes da batalha de Micmás, contra os filisteus, para evitar a fuga de seu povo, provocando a ira de Samuel, profeta e adivinho que estava ausente. Ele não podia admitir que Saul houvesse desrespeitado o "Herem", durante uma guerra contra os amalecitas, sentiu-se relegado pelo novo poder ascendente dos soberanos hebreus. Ungira Saul soberano, mas rompeu relações com ele e posteriormente ungiria Davi, um aventureiro ex servidor do rei.        

Em sua campanha militar para conquistar sua “Terra Prometida” Josué buscou algumas alianças e destruiu várias cidades estado sem deixar sobreviventes no que seria chamado hoje de genocídio e limpeza étnica. Não é difícil pensar que tais textos inspiradores onde fica entendido ser vontade divina o morticínio de alienígenas tenham inspirado tantas religiões e crenças nos milhares de anos posteriores criando a idéia para cada grupo ou sociedade que tinham os mesmos direitos em eliminar seus competidores e povos mais fracos usando o argumento da guerra inspirada por Deus. Podemos traçar um trinômio nestes textos “sagrados” que muitas vezes se confunde: alimento – fé – guerra, como estrutura arquetípica que se auto complementa em espiral num círculo vicioso e resulta em disputa territorial pelo espaço vital travestida de conflito religioso.

Os apócrifos livros de Enoque se tornaram populares durante a helenização dos judeus provocada pelas conquistas de Alexandre o Grande, e pelo resultado desagregador das longas guerras travadas pelos seus generais, herdeiros do império após sua morte prematura. Em uma notável ampliação do Genesis 6 1-4, o autor de Enoque 1 começa com a descida de uns 200 anjos luxuriosos que baixam no cume do monte hermom à caça das belas filhas dos homens. São comandados por Semyaz, que depois se tornou o grego Órion, assim punido perpetuamente como uma figura de cabeça para baixo. Após acasalarem-se com mulheres terrenas, os anjos caídos geram filhos gigantes, de apetite voraz, que devoram sucessivamente alimentos vegetais, animais, pessoas e uns aos outros.

Contemplando esse horror, e a terrível doutrina de magia e bruxaria de Azaz’el, um dos demônios, Deus manda um dilúvio sobre a terra, e ordena ao arcanjo Rafael que enterre Azaz’el sob as pedras da terra devastada. Este é um mitema recorrente entre os povos mediterrâneos e os de origem indo ariana que desembarcaram em levas no O. Médio. Resquícios de uma lembrança ancestral de algum cataclisma natural associado aos hábitos que antes faziam parte da tradição, mas que haviam se tornado pecaminosos nas escrituras sagradas. Conseqüência razoável de um período de dificuldades quando era necessário reafirmar antigos dogmas sobre alimentos que deveriam ser interditos aos homens em meio as misérias da guerra.

Já no séc. XVIII iluminista o trinômio sofreu uma pequena alteração sob inspiração do racionalismo que dava seus primeiros passos como fator emulador da mente humana e então a fé passou a ser substituída algumas vezes pela ideologia como sucedâneo mais pobre da visão do sagrado, mas incorporando os bons e os maus aspectos do arquétipo religioso. O sacrifício do mártir e a guerra por idéias disfarçaram mais uma vez o arquétipo do antropófago, agora com vestes distintas de aventureiro ou missionário, e como estandarte levavam os ideais de exploração econômica através da imposição da doutrina civilizatória européia aos demais povos considerados por eles incultos e inferiores. Ao destruir suas culturas milenares e invadir seus territórios afirmavam estar levando a luz do esclarecimento da sua civilização superior, a única válida, e como retorno podiam se tornar donos de terras e gentes que dispunham para seu lucro e ao seu bel prazer. Eram os anjos caídos que mais uma vez desciam de suas naves divinas, cheias de canhões, para colher seus frutos e criar uma nova raça de gigantes.

Como no seu aspecto anterior de guerra santa, a ideologia aprofundou o sectarismo dos homens, principalmente dos europeus em permanente conflito, que desenvolveram idéias tão ou mais humanistas no campo político quanto as de Jesus e Buda no religioso, e a partir delas iniciaram novas contendas que trouxeram morte e destruição para milhões de pessoas no mundo inteiro nos últimos três séculos.

A antropofagia se mimetiza, se camufla nas boas intenções dos homens ao tentar organizar o exterior de suas humanidades em detrimento de um crescimento de seus conceitos internalizados pela sua fisiologia animal natural que quando desnudados são os mesmos dos seus antepassados homo habilis que viviam em busca de novas presas. Até mesmo a análise de sua psicologia profunda encontra obstáculos neste “eu” primordial da humanidade como “sombra” que é sempre mencionada, mas nunca definida com exatidão pela falta de um limiar diferencial e um distanciamento crítico dos pesquisadores que buscam atenuar aquilo que não podem sujeitar.

Mas é na linguagem que podemos traçar um paralelo e fazer uma análise da condição humana, é através de seus símbolos, muitas vezes velados, que podemos descortinar, tirar o véu das boas intenções, para fixar a verdadeira face do engolidor de homens que todos carregamos dentro de nós.

Recorrendo ao texto sobre a conquista do Novo Mundo realizada pelos espanhóis no séc. XV podemos verificar o estilo apocalíptico do Frei Las Casas que tão bem explica o sentimento em relação a estes invasores predadores: “Sobre esses cordeiros tão dóceis, tão qualificados e dotados pelo seu Criador (...), os espanhóis se arremessaram no mesmo instante em que os conheceram e como lobos, como leões e tigres cruéis, há muito tempo esfaimados, de quarenta anos para cá, e ainda hoje em dia, outra coisa não fazem ali senão despedaçar, matar, afligir, atormentar e destruir este povo por estranhas crueldades; de tal sorte que de três milhões de almas que havia na ilha Espanhola e que nós vimos, não há hoje de seus naturais habitantes nem duzentas pessoas”.

Não é gratuita a expressão deste missionário de Cristo ao se deparar com os desvios de conduta que testemunhou. Expressa de forma clara que os “conquistadores” na verdade como monstros saídos de algum filme macabro de terror classe B destruíram toda uma civilização, movidos pela sua fome e ganância. Ao compará-los aos predadores mais conhecidos do homem pela sua ferocidade em seu estilo de linguagem poética definiu com magistral sentimento humano o que percebemos da observação do lado sombrio destes animais numa personificação que só deixa de ser exata, pois tais feras não possuem alguns outros defeitos característicos da besta humana.

Ao voltarmos nossos olhos para o inicio dos tempos, quando nossos ancestrais habitavam as cavernas, mais uma vez nos lembramos de seus desenhos de animais com os quais se identificavam pela sua força ou ferocidade. Em locais de difícil acesso, onde só com o uso de archotes era possível iluminar as paredes das cavernas, com detalhes de extraordinária beleza expressavam sua admiração pelos animais que caçavam e de forma mágica imaginavam influir no sucesso de suas caçadas ao tentar capturar seus espíritos nas paredes da alcova. Muitas vezes as plantas e animais totêmicos são comestíveis, de modo que seu clã pode tomar posse deles comendo-os, de regra apenas em ocasiões sagradas. Mas figuras totêmicas não comestíveis também significam alguma coisa. Segundo os estudiosos podem significar diferentes reinos da natureza, respectivamente pela sua espécie: céu, terra e água e servem para identificar um clã de outro conforme sejam aves, peixes ou animais terrestres. Assim define sua identidade e a de seus ancestrais conforme as correspondências e das correspondências estabelece suas distinções. Assim tanto no aspecto da sociedade como no psíquico estabelece um processo de individuação que gira em torno da natureza sagrada do tabu.

Como exemplo deste pensamento mágico podemos novamente solicitar o auxilio ao artilheiro alemão Hans Staden que no séc. XVI, aprisionado pelos tupinambás sobreviveu ao ritual antropofágico destes indígenas brasileiros e em seu livro relata seu diálogo com o principal chefe na época: ...”Cunhambebe tinha diante de si um grande cesto cheio de carne humana. Comia uma perna, segurou-a frente a minha boca e perguntou se eu também queria comer. Respondi: “Um animal irracional não come um outro igual a si, e um homem deveria comer um outro homem?” Então ele mordeu e disse: “Jauára ichê. Sou uma onça”. “É gostoso”...

A piada do Tuxaua que chocou tanto o alemão possui raiz profunda no imaginário daquelas tribos que viam no jaguar seu poder como carnívoro predador, inclusive de carne humana sem a contrapartida de ele servir de caça para os indígenas que não utilizam sua carne como alimento. Ao mesmo tempo nos dá a idéia que até mesmo para os próprios agentes que o praticavam o seu comportamento alimentar poderia ser equiparado ao das feras sanguinárias representadas pelo jaguar. Conforme seus costumes o chefe inveja a liberdade da fera e se regozija de ser ele que pode devorar o adversário e viver como ele acredita que seja sua natureza como caçador e seu inimigo a presa.

Partindo de algumas páginas do livro de Curt Nimuendajú sobre os Xerentes, na parte final do seu Le jaguar et le tamanoir: os Xerentes (...) declaram abertamente querer viver como os jaguares. De fato esse animal se parece tanto com eles que chega a constituir um ideal de vida ativa e produtiva: todo caçador quer possuir a sua habilidade; se diz que toda mulher o deseja para marido e que cada xamã deve ser capaz de se transformar em jaguar para poder cumprir seus milagres. O tamanduá, ao contrário, está associado aos antepassados e aos anciãos. Oferece a imagem de um modo de vida tranqüilo, sem apetite, a não ser quanto às formigas; uma vida com poucas exigências, durante a qual ele não pede nada aos outros e não quer fazer mal a ninguém. (Arcand, 1995: 293-94).

Em Caminhos e fronteiras, Sérgio Buarque de Hollanda releva o perigo que o jaguar representava, tanto para os sertanistas quanto para os índios e afirma que "até pelo porte e aspecto, muitas delas [onças] parecem denunciar suas predileções antropofágicas. Assim, a magreza num jaguar passava geralmente por indício quase certo de antropofagia" (Hollanda, 1994: 92). Mas é de extrema importância observar, de acordo com o nosso autor, que, como relata Gabriel Soares de Souza (1971: 288), "entre esses índios [os antigos Tupi do litoral], o modo ordinário de caçar a onça era, ao que parece, por meio de mundéus ou fojos. Uma vez aprisionada é que a fera podia ser morta a frechadas. Em certos casos acabavam-na em terreiro, como aos contrários, tomando nome e fazendo todas as cerimônias da antropofagia ritual" (Hollanda, 1994: 94)14. E tudo isso, complementado pelo fato de que a carne do jaguar "não seria apetecida dos índios pelo seu sabor, mas antes pelo poder, que lhe atribuíam muitos, de comunicar força e coragem a quem a consumisse" (: 95); deve ser levado em consideração, também, o fato de que as próprias unhas e dentes do jaguaretê, como os dentes e ossos humanos, eram usados como "amuleto" a fim de afastar o portador de qualquer perigo.

Falando a respeito da necessidade de um homem (guayaki) superar um determinado estado, para realizar-se como caçador ao arrancar caça da floresta, Clastres observa que, caso não tenha êxito em sua ação, "será ele mesmo a se tornar caça para esse outro caçador que é o jaguar". Assim, essa fera se configura como um concorrente do homem (pois mata os mesmos animais) e, além do mais, representa um animal que torna o homem, ao mesmo tempo, caçador e caça. O jaguar constitui uma ameaça à "humanidade do homem". Este último, para conservar a própria humanidade – nós diríamos, para "renová-la ritualmente" –, "deve afirmar-se como caçador, como matador de animais" (Clastres, 1995: 22)16. E se o jaguar vinga "a quase todos os animais, quando os caçadores os flecharam" (: 196), ele parece configurar-se com o estatuto que é próprio do "Senhor dos animais" (mais freqüentemente da "Senhora dos animais") das sociedades caçadoras (Brelich, 1966: 19-20 e 45; Lanternari, 1974; Massenzio, 1994: 82ss).

Assim pensavam os primeiros homens que desbravavam as estepes em busca do seu sustento. Do arquétipo do ideal predador criado no imaginário daqueles homens primitivos surgiram os brasões heráldicos, as bandeiras e águias que os exércitos sempre levaram em suas marchas pelo mundo, como símbolo de um passado de glórias que pretendem através do seu totem militar transportar a essência regimental simbólica destes predadores e até hoje os regimentos carregam em seus uniformes as figuras das feras na tentativa de incorporar, através da tradição militar, seus poderes combativos no moral das tropas.

O sagrado e o profano adquirem uma cumplicidade quando a morte adquire um simbolismo marcial. O guerreiro necessita libertar-se de sua formação social gregária e limitante da vila para incorporar seu papel transgressor de caçador de homens e para tanto o predador é a imagem clara desta representação.

Ramsés II (1301-1234 A.C.) faraó do Egito era intitulado também como mostram vários registros arqueológicos de sua vitória militar sobre os hititas, povo invasor proveniente da Anatólia, pelos seguintes epítetos elogiosos ressaltando a sua bravura de guerreiro sanguinário: “como um touro de aguçados chifres (que pisou seus inimigos)...o poderoso leão...o chacal que num momento atravessa o círculo da terra...o divino, esplendido falcão”. O faraó era a manifestação divina na terra de hórus, o deus sol, o Grande Canibal, razão de deter tantos títulos com qualidades exageradas de predador primordial, conforme a história oficial deixada por seus escribas: sozinho em seu carro de guerra na batalha engolia os exércitos inimigos.

Ramsés vence os Hititas
Os indígenas americanos e seus hábitos antropofágicos só estavam em um estágio de evolução de costumes um pouco anterior às civilizações do O. Médio onde ainda no séc. XVIII se podia vislumbrar congelado um corte lateral dos costumes dos guerreiros pré-históricos que encontraram ecos similares na Ásia, África e Europa em épocas anteriores e subseqüentes de sua história repleta de guerras, invasões e massacres entre vaivens de povos nômades de origem semítica ou indo européia que deixaram em seus anais registrados mitos sobre vitórias e derrotas e coalharam de corpos sem vida de tempos em tempos os campos de batalha onde se deliciaram e engordaram negros corvos.

Guerra é arquétipo do homem que necessita romper as barreiras sociais limitadoras da vida, os interditos e tabus da sociedade urbana e uma visão cosmopolita, universalista de sociedade deve ser abandonada pelo neófito para que através do treinamento básico de guerreiro voltar a readquirir seus instintos de caçador que comumente são bloqueados pela religião, pelos costumes gregários e pelas leis do rebanho e assim voltar a viver através da representação do jaguar em oposição ao convívio social das comunidades agrícola e urbana onde multidões vivem como o atrofiado tamanduá. Daí sua identificação com seu grupo na caserna, é lá entre seus iguais, onde o culto ao predador é reencenado, que ocorre o renascimento dos instintos de matilha em oposição aos de rebanho que prevaleciam quando era civil. Seus uniformes carregam os símbolos fálicos e as armas gravadas nas flâmulas e distintivos dos batalhões em todo o mundo com animais predadores representados em atitude agressiva. Memória primordial de todos os exércitos da terra do instinto e do ideal de predador promordial antropofágico dos antigos caçadores que deve ser renovado para que seja cumprida sua missão mortal em campo .

Os tupinambás como seus vizinhos acreditavam que ao devorar seus inimigos, devoravam também suas almas que passavam a fazer parte integrante do totem de sua tribo. Segundo Freud significa que a matéria da agressão está na boca a aos dentes e que um desejo carnívoro não está longe da superfície. Os poderosos engolem almas para se alimentar de seus recursos espirituais. São canibais psicológicos. Podem ser tão poderosos devido a este fato que reivindicam como animal familiar um jaguar, um tigre, um crocodilo ou um abutre, ou almejam se transformar em tais animais depois de mortos. Os sacerdotes astecas de Xipe Totec, o deus flagelado, vestiam-se com as peles das vitimas do sacrifício, como um símbolo de regeneração.

Kali

Nas manifestações artísticas das civilizações centro americanas e do sul da Europa, e de muitas áreas da Ásia e do Pacifico, é possível encontrar este arquétipo relacionado com a face ritualizada dessa característica oral antropofágica: um rosto de monstro com olhos esbugalhados e língua para fora, com quatro grandes presas saindo da boca e curvando-se sobre os lábios. É a mascara da medusa. Na Grécia era utilizada como um amuleto contra o azar, pendurado sobre fornos onde a chama do lar assava pães e paneladas ou em qualquer outro sítio onde um aviso “Não se aproxime” fosse necessário. Mas em outras regiões do planeta é a face de um deus, terrível e violento, como Kâla, o Tempo, o devorador de ciclos dos hindus.

Sua versão feminina, a deusa Kali é representada com sua longa lingua espichando-se para lamber as vidas e o sangue de seus filhos. Ela é o próprio modelo da fêmea que devora sua ninhada, a ogra canibal: a própria vida, o universo, que cria os seres apenas para devorá-los. Porém ela também é a deusa Annapurna ( anna significa alimento e purna abundância ) , a correspondente indiana da egípcia Ísis com o filho sol da manhã, Hórus, grudado ao peito, ou da babilônica Ishtar, amamentando o deus lua renascido, protótipos arcaicos da Madonna da Idade Média que carrega o menino ao colo, mitema recorrente nos cultos até nossos dias.   

Outros seres dos mitos conhecidos entre os hindus são os Râkchasas que literalmente significa “comedores de carne crua” e, segundo a superstição popular são gênios, maus espíritos, demônios dotados de grande poder. Eles atormentam a humanidade com todo o tipo de mal; freqüentam os cemitérios, estorvam ou perturbam os sacrifícios e mudam de forma à vontade. Correspondem aos ogros celtas pois são antropófagos. Muitas vezes são apresentados como Yogis, Sâdhus, piedosos e Iniciados, ocupação algo imprópria de demônios. Seus superiores os Yakchas, devoradores de homens como seus pares são associados às más influencias que se incorporam nos homens.

Explicando sobre os demonios que a humanidade agasalha em seus mitos Freud comenta: "Em relação ao maligno Demônio, sabemos que se considera como antagonista de Deus, apesar de sua proximidade estreita com a natureza divina. Em todo o caso, sua história não foi escrutinada tão profundamente como a de Deus; nem todas as religiões adotaram o espírito malvado, como inimigo de Deus; seu protótipo na vida do individuo fica, em principio relacionado à sombra. Mas o certo é que os deuses podem converter-se em demônios malignos enquanto novos deuses os substituem. Quando um povo é derrotado por outro, geralmente acontece que os deuses caídos dos vencidos se transformam em demônios do vencedor. O malvado demônio da fé cristã, o Diabo da Idade Média era segundo a mitologia cristã, um anjo caído, da mesma natureza de Deus. Não é preciso apelar a muita agudeza analítica para comprender que, na sua origem, Deus e o Diabo eram idênticos, uma personalidade única que mais tarde se dividiu em duas personalidades opostas. Nos tempos primitivos das religiões, o mesmo Deus ainda detinha as características apavorantes que mais tarde foram reunidas em seu contricante".    

Imagens de mitos monstruosos são projeções das sombras que a humanidade carrega em seu íntimo, os demônios canibais entre as castas dominantes eram representados com as feições e associados aos autóctones hindus, o povo que ali vivia antes da chegada dos Ários invasores que foram os vencedores, os verdadeiros destruidores antropofágos de povos e civilizações.

Sacrifício de Reis –

Com os estudos recentes da mitologia, sua exegese conheceu nova fase. Pensou-se em surpreender o nascimento dos mitos no presente e sob nossos olhos. A pesquisa voltou-se para as sociedades que conservaram sua identidade mitológica e que ainda produzem mitos todos os dias. Assim nasceu o “método comparativo” nas mãos de Mannhardt e Frazer. Ele repousa sobre o postulado de que as ações do espírito humano são idênticas, seja qual for a civilização, seja qual for o grupo étnico. Pensando assim mitos dos polinésios ou dos bantos africanos podem explicar um mito grego ou romano. Tais mitos sempre serviram de resposta às exigências profundas do pensamento humano sobre as crenças na imortalidade e a negação da morte, segundo Frazer questões essenciais ao pensamento humano.


Na sua obra "As Máscaras de Deus", Joseph Campbell define o plano onde atua o mito: "... vale a pena recordar o axioma, porque a mitologia foi historicamente a mãe das artes e, no entanto, como tantas mães mitológicas, igualmente a filha nascida de si mesma. A mitologia não é inventada racionalmente; a mitologia não pode ser entendida racionalmente. As interpretações teológicas a tornam ridícula. A crítica literária a reduz a metáfora. Entretanto, uma abordagem nova e muito promissora se abre quando é vista à luz da psicologia biológica como uma função do sistema nervoso humano, exatamente homóloga aos estímulos sinais inatos e aprendidos, que libertam e dirigem as energias da natureza - das quais nosso próprio cérebro é apenas a flor mais fascinante".

Há também evidências de um parentesco genérico, por difusão, entre vários povos que habitaram o Oriente Próximo e a Europa e seus cultos clássicos de mistérios, não apenas com o complexo mítico egípcio do deus ressuscitado Osíris e o mesopotâmico Tammuz, mas também em conformidade com os mitos e ritos primitivos, com raízes no neolítico e na Idade do Bronze, amplamente difundidos do sacrifício do jovem ou da jovem donzela imolada, ou, mais vividamente do jovem casal numa cerimonia sacramental de amor e morte, cuja carne era consumida em comunhão canibal, simbolizando o mistério daquele Ser além da dualidade, de algum modo partilhado no interior de cada um de nós. A mesma ideia é expressa mitologicamente na versão indiana da Criação sobre o dilaceramento da criatura primordial, o Si-próprio, que, após expandir-se, criou por divisão o homem e a mulher e assim formando todas as criaturas acabou tornando-se esse mundo.    


No antigo Egito entre toda a profusão de deidades adoradas pelo seu povo está como um rei o  deus Osíris, herói civilizador primordial das mais remota antiguidade, de seu trono assegurou paz e riqueza e segundo contam os historiadores acabou com a antropofagia como prática ritual entre os egípcios. Conforme o mito, seu malvado irmão Set, ou Tifón lhe assassinou usando falsa estratagema, por inveja, e dividiu seu corpo em quatorze pedaços. Sua irmã e esposa Ísis saiu em busca das partes de seu amado esposo e recolheu-os um a um e erigiu para cada parte majestosa tumba. Seu filho Hórus, quando maior, vingou seu pai, e mediante magia sagrada lhe devolveu a vida. Osíris passou então a reinar no Mundo dos Mortos.


Como Adonis, Action, Hipólito, Dioniso Zagreu e Orfeu, é um herói que sofre, um herói pranteado que ressuscita, seu mito envolve um antigo ritual antropofágico que foi transformado em sacrifício de um touro sagrado, cortado em quatorze pedaços e comido em comunhão pelos fiéis, e posteriormente substituído por outro novilho sagrado como símbolo do seu renascimento. Os gregos se surpreendiam com a semelhança, a analogia da lenda de Osíris com a de Dioniso Zagreu, o novilho devorado pelos titãs, que Zeus faz renascer para a vida. Como Osíris foi habitar o mundo dos mortos onde os acolhia e auxiliava-os em sua purificação. Por difusão esses cultos atravessaram fronteiras imensas, mantidas através da tradição oral de povos pré-históricos, que marcharam até os confins da terra com seus ritos e lendas. Da mesma forma o ritual órfico deu um sentido místico a esses sofrimentos e a essa ressurreição. 


Para os povos “primitivos” a morte é sempre um acidente evitável, resultante de uma “força maléfica” externa que se infiltra no corpo do individuo e corrompe o ser. Em função desta crença ritos foram criados com a finalidade de desenvolver e conservar as forças vitais e inibir as forças antagônicas, muitos deles de evocação antropofágica. Um exemplo deste pensamento invocado por Frazer é uma antiga prática latina: existia em Nemi, perto de Roma, uma floresta consagrada a Diana. O sacerdote deste santuário natural tinha o nome de Rei da Floresta e a tradição permitia a qualquer um que chegasse até lá, o matasse e assumisse seu lugar. Para Frazer, o Rei da Floresta personificava Júpiter, “divindade do carvalho e do trovão”, e se alguém o matava evitava assim a decrepitude do Rei decorrente de sua velhice, a decadência de sua energia vital, que poderia comprometer a vitalidade da própria natureza. De predador a presa ambos garantiam a sucessão periódica de um novo sacerdote mais jovem desde que este tivesse condição real de enfrentar e vencer o oponente mais velho para assim manter o equilíbrio do movimento do universo, pois caso tal não ocorresse seria um perigo para todos. Em sua obra, aos poucos, Frazer demonstra que este ou aquele relato lendário sobre sacrifícios humanos falam dos costumes dos antigos (por exemplo o esquartejamento do rei Licurgo por ordem do deus Dionisio ou então o castigo de Astidamia, cortada aos pedaços, que foi desmembrada e teve suas partes espalhadas pela cidade de Iolco) ou mesmo remonta às suas origens antropofágicas, como nos mitemas de Tiestes e de Pelóps, que conservam ainda hoje as lembranças de práticas bem reais. Todas as lendas de crianças que foram abandonadas possuem semelhantes na América e África, onde o primogênito é sempre marcado com uma condenação. Se ele viver comprometerá o poder do pai, sobretudo se ele for o chefe, sendo um perigo real à existência de toda a tribo. Este é o núcleo de muitos mitemas, práticas de sangue do passado que foram registradas cujo conteúdo se perdeu e se transformou com o tempo. Só a tradição ancestral justificava para os antigos os sangrentos procedimentos de infanticídio que aos poucos eram ritualizados pelos sacerdotes e se transformavam em culto alegórico para sobreviver hoje como lembrança coletiva. Édipo ilustra bem como pensavam os antigos, quando o adivinho vaticinou para seu pai, o rei Laio, que um dia iria ser assassinado pelo próprio filho, e o soberano de Tebas intentou matar o recém nascido, o fracasso do seu crime anos após resultaria na morte do Rei pelas mãos do filho e na calamidade que se abateu sobre seu reino. Da mesma forma explica Frazer são os mitos sobre Frixo e Hele, onde é recorrente o enredo sobre sacrifícios de primogênitos das famílias reais, conforme conta a lenda: a fome se abatia sobre uma região da Tessália e só terminaria com o sacrifício dos dois irmãos, filhos do rei Atamas. As duas crianças conseguem se salvar graças ao carneiro, o “velocino de ouro”. Mais tarde, acometido pela loucura, Atamas mata Learco, seu filho de outro casamento, enquanto sua mulher, Melicerta, mata seu segundo filho se precipitando nas ondas do mar. Segundo o relato na Tessália era vetado ao primogênito, sob pena de morte, de ingressar no “Pritaneu”, palácio onde ocorriam os banquetes dos magistrados e se hospedavam os visitantes ilustres. Todas estas evidencias históricas reunidas nas lendas reafirmam a tradição de como pesava uma ameaça sobre os filhos mais velhos e que naquele cantão existia de fato um rito sacrificatório que pode ser observado em várias outras civilizações. Na Grécia não houve exceção, os mesmos processos antropofágicos foram deflagrados semelhantes ao dos demais povos de sua época, seguindo como se poderia esperar o mesmo padrão humano de outras culturas próximas e distantes.

Entre os semitas encontramos costumes semelhantes associados à sucessão real. Camos ou Chemos (Kemoch = o subjugador) era adorado pelos moabitas, povo que habitava a parte oriental do Mar Morto e que vivia em constante guerra com os hebreus pelo domínio destes territórios. Certa vez, o rei de Moab, sitiado na cidade de Quir Jaraset, se viu numa situação tão crítica que ante a iminente derrota, imolou seu filho primogênito, que segundo a bíblia, iria reinar depois dele, sobre a muralha em honra a Camos, causando consternação e horror aos atacantes que retornaram para sua terra. (II Reis III, 27) Até o reinado de Salomão este deus era adorado livremente em Jerusalém (I Reis XI,7)

O sacrifício dos primeiros filhos masculinos era prática corrente entre os antigos cananeus; os fenícios mantiveram esses costumes até épocas avançadas da antiguidade. Refere Filon que a prática religiosa era costume em ocasiões de grande calamidade pública; sacrificavam-se as crianças mais queridas para afastar as desgraças; nos tempos mais amenos substituía-se a vítima humana por um animal; nas fundações dos templos sacrificavam-se vítimas humanas, como se verifica no templo de Tânita, em Cartago e nas escavações de Kafer-Djarra, velho sítio cananeu.

Refere Diodoro que após a vitória dos cartagineses sobre Agátocles (307 a.C.), os prisioneiros vencidos foram imolados no altar dos deuses; é ainda ele quem nos revela a imolação de dois meninos na Sicília, provavelmente quando na ilha foi introduzido o culto de Moloch (512 a. C) . O deus era representado como um homem com cabeça de touro, divindade também adorada pelos amonitas e moabitas. Era identificado com o Baal semita e com Cronos entre os gregos. Pensa-se que o famoso touro de Faláris era uma representação desse ídolo, com o qual o Minotauro das lendas gregas tem afinidade.

O touro, criação de Faláris, tirano de Agrigento, cidade da Sicília, no séc VI a. C., era uma esfinge de bronze oca na forma de um touro mugindo, com duas aberturas, no dorso e na parte frontal localizada na boca. No interior havia um canal desenvolvido semelhante à válvula móvel do instrumento musical trompete, que ligava da boca ao interior do Touro. Após colocar a vítima a ser punida ou imolada na esfinge, era então fechada a entrada colocando-se sobre uma fogueira. À medida que a temperatura aumentava no interior do Touro, o ar ficava escasso, e o executado procuraria meios para respirar, recorrendo ao orifício na extremidade do canal. Os gritos exaustivos do executado saíam pela boca do Touro, fazendo parecer que a esfinge estava viva. Até o séc. III d. C. , assegura-nos Tertuliano, se cometiam, em segredo, sacrifícios humanos na Sicília. 

A seguinte lenda talmúdica relacionada ao costume do infanticídio remete ao oferecimento de Abraão para imolação à Javé de seu filho Isaac e mostra  como pensavam esses povos em relação ao sacrifício do primogênito: “E eu”, exclamou o patriarca, “juro que não descerei do altar antes que me tenhas atendido: Quando me ordenaste que não sacrificasse meu filho Isaac, violaste de novo a palavra que disseste: ‘É de Isaac que sairá a tua posteridade’. Mas eu me calei. Se, porém, meus descendentes um dia procederem contra Ti e Tu quiseres castigá-los por causa disso, lembra-te de que Tu não estás inocente, e perdoa-lhes”. “Vamos então”, respondeu o Senhor, “eis ali um carneiro na sebe, preso pelos chifres; oferece-o em sacrifício, em lugar de teu filho Isaac. E se teus descendentes um dia pecarem e Eu me sentar no dia do ano novo para julgá-los, então eles devem tocar uma corneta de chifre de carneiro para que eu me lembre de tuas palavras e faça prevalecer a misericórdia sobre a justiça”. (Fromer e Schnitzer, Legenden aus dem Talmud, 1922, pág 34s)


Nesta época, na Mesopotâmia, os eclipses do Sol e da Lua eram considerados extremamente perigosos para os reis, e prediziam muitas vezes sua morte. A astrologia estava já suficientemente avançada e as previsões dos astrólogos eram bastante precisas sobre os movimentos dos astros. Se Jupiter era visível, o rei estava a salvo; se um eclipse escurecia a parte superior da Lua, o soberano de Amurru ou do Oeste morreria; se escurecia um dos quadrantes inferiores, era o destino do rei Assírio que estava em perigo. No entanto o monarca podia recorrer a um estratagema para enganar os deuses, colocando no trono um substituto, para transferir os maus augúrios para esta pessoa, que era assassinado cem dias após o eclipse e enterrado com honras de rei. Os hititas, povos invasores de origem ariana, influenciados pelos costumes da Mesopotâmia tinham ritual semelhante.

Na Babilônia e na Pérsia ocorria a festa chamada dos sacaea, quando era organizada uma procissão em triunfo com um condenado investido de rei. Os papeis entre escravos e senhores eram então invertidos, os últimos servindo os primeiros numa subversão total da ordem regada a farta bebida e comida. Ao final das festividades o rei substituto era despojado das ricas vestes, açoitado, enforcado ou crucificado para o restabelecimento do equilíbrio universal. A origem do folguedo macabro está relacionada às festas equinociais, de passagem  do ano, realizadas em Março, período que marca o fim da trajetória solar no firmamento, onde o sacrificado era o próprio simulacro do soberano e sua figura se assemelhava ao rei momo das atuais festas carnavalescas na Europa e América do Sul, personagem que reina hoje soberano durante a folia popular sem o trágico desenlace final. As saturnálias romanas, que ocorriam em Dezembro, foram  influenciadas diretamente por esses ritos primevos orientais e também tinham significado semelhante de subversão da ordem estabelecida. Essas festividades atravessaram os séculos resistindo ao assédio do catolicismo e sobrevivem até hoje corrompidas do seu significado sagrado.      

Em nossa cultura só conhecemos os grandes traços da religião gaulesa e germânica sob o disfarce da mitologia clássica ou através do relato de alguns poucos autores clássicos gregos ou latinos cujas obras sobreviveram aos tempos de obscurantismo da Inquisição. Mesmo no estudo dos deuses latinos, hoje busca-se despojá-los da roupagem helênica, para descobrir por trás dos traços gregos a verdadeira face da entidade primitiva indo ariana ou etrusca que se esconde nesse sincretismo sagrado adotado pelos antigos.

Desta forma Ifigenia, imolada pelos gregos em Aulis para propiciar bons ventos às naus na guerra de Tróia como tema recorrente do principio feminino muito cultuado pelos gregos antes da Idade das Trevas, será novamente cultuado em tradições folclóricas ou culturais em outras regiões da Grécia e até mesmo em Roma: ora em Taurida ora no Peloponeso onde seu culto se confunde com os ritos selvagens da Artemis espartana e por fim no Lácio, na floresta de Nemi onde ela é a sacerdotisa de Diana protetora das florestas. Como esta relação entre as divindades gregas e latinas ocorreu ainda é assunto de controvérsia entre os estudiosos. Alguns imaginam que os mitos gregos se tornaram preponderantes em relação aos latinos naturalmente associando Tróia a sua origem em função da força e identidade com o mito helênico, outros imaginam uma origem mais distante quando os primeiros guerreiros arianos desembocaram na península européia e com seu furor trouxeram suas antigas lendas e cultos que depois puderam ser sincretizados entre os povos que habitavam o mediterrâneo. É possível que ambas as hipóteses sejam verdadeiras.

Originados na região do Cáucaso, Ásia Oriental, os indo-arianos empreenderam uma série de invasões; um grupo de tribos espalhou-se por toda a Índia, Irã, Turquia, Oriente Próximo e Europa. Estas invasões começaram no segundo milênio a.C. Entre seus descendentes incluem-se os gregos, os romanos, os teutões. Todos estes grupos nômades de origem indo arianas eram sociedades compostas de castas de guerreiros e magos com complicados sistemas de crença e portadores de tecnologias bélicas, na época, inovadoras, que lhes garantiram uma supremacia inicial na conquista de grandes áreas territoriais do mundo antigo. Esses pastores se transformaram nas classes dominantes dos povos que dominaram e mantem até hoje sua supremacia. A antiga palavra védica para guerra, gavisti, significa "desejo por vacas" e nessa época as vacas dos pastores árias eram abatidas, usava-se o couro e consumia-se o leite e a carne. Posteriormente sofreram grande influência dos autóctones, assimilaram as crenças dos dominados onde  realizaram suas conquistas para melhor governar as classes inferiores mais numerosas de trabalhadores braçais. Mas de onde surgiram esses povos?

Recentemente foi redescoberto no meio de um deserto aterrorizante no norte do Tibete um extraordinário cemitério ancestral por uma equipe de arqueólogos chineses. Os ocupantes morreram quase quatro mil anos atrás, mas seus corpos foram bem preservados pelo ar seco do deserto. O sítio arqueológico fica em território hoje pertencente à província de Xinjiang, noroeste da China, mas os restos encontrados são de pessoas com traços europeus, cabelos castanhos e narizes longos.

Cemitério de Tarim

Embora sepultados em um dos maiores desertos do mundo, os corpos foram enterrados em barcos posicionados de cabeça para baixo. Em lugar do convencional simbolismo que consagre esperanças pias na mercê de um deus quanto a eles, o cemitério exibe uma vigorosa floresta de símbolos fálicos, que era símbolo comum de culto entre os antigo, arquétipo do potencial de geração universal adorado por todas as civilizações do planeta.

O povo há muito desaparecido ainda não tem nome, porque sua origem e identidade ainda não foram conhecidas. Mas estão surgindo muitas pistas sobre sua origem, modo de vida e até mesmo sobre o idioma que falavam. Os sepulcros, conhecidos como Pequeno Cemitério Fluvial Número 5, ficam perto do leito seco de um rio na bacia de Tarim, região cercada por inóspitas cadeias de montanhas. A maior parte da bacia é ocupada pelo deserto de Taklimakan, uma terra tão árida que os viajantes da Estrada da Seda sempre optaram por contorná-lo ao norte ou ao sul.

Nos tempos modernos, a região foi ocupada pelos uigures, uma etnia de fala turca, e nos últimos 50 anos também recebeu migrantes da etnia chinesa dominante, os han. Grande número de antigas múmias - na verdade cadáveres ressecados- foram localizadas nas areias, e se tornaram mais um objeto de disputa entre os uigures e os han, as duas etnias que disputam os territórios da região.

As cerca de 200 múmias encontradas têm aparência distintamente ocidental, e os uigures, mesmo que só tenham chegado à região no século 10, as alegam como prova de que a província sempre pertenceu a eles. Algumas das múmias, entre as quais uma mulher bem preservada conhecida como "a beldade de Loulan", foram analistas por Li Jin, conhecido geneticista da Universidade Fudan que afirmou em 2008 que o ADN continha marcadores que apontavam para origens no leste ou até mesmo no sul da Ásia.

Múmia de Tarim

As múmias do cemitério são as mais antigas já encontradas na bacia de Tarim. Testes de carbono conduzidos pela Universidade de Pequim dataram as mais antigas delas de 3.980 anos atrás. Uma equipe de geneticistas chineses analisou o DNA das múmias.

A despeito das tensões políticas quanto à origem das múmias, os pesquisadores chineses afirmaram em relatório publicado pela revista científica BMC Biology que o povo tinha origens mistas, com marcadores genéticos europeus e siberianos, e que provavelmente tenha vindo de fora da China.

Todos os homens que foram analisados portavam um cromossomo Y hoje mais comumente encontrado no leste da Europa, centro da Ásia e Sibéria, mas raramente na China. O DNA mitocôndrico, que é transmitido pela linhagem feminina, consistia de uma linhagem da Sibéria e duas comuns na Europa. Já que tanto o cromossomo Y quanto as linhagens de DNA mitocôndrico são antigas, assim os pesquisadores chineses concluíram que as populações europeia e siberiana provavelmente já haviam começado a se combinar antes de chegar à bacia de Tarim, por volta de quatro mil anos atrás.

O cemitério foi descoberto em 1934 pelo arqueólogo sueco Folke Bergman, mas passou 66 anos ignorado até que uma expedição chinesa voltou a localizá-lo, usando o GPS. Os arqueólogos começaram a escavar o sítio entre 2003 e 2005.

Enquanto os arqueólogos chineses escavavam as cinco camadas de túmulos, encontraram cerca de 200 estacas, cada qual com quatro metros de altura. Muitas tinham lâminas lisas, pintadas de vermelho e negro, como os remos de alguma grande galera que tivesse naufragado por sob as ondas de areia.

E por sob as estacas existiam de fato barcos, de cascos revestidos de couro animal e posicionados de cabeça para baixo. Os corpos que os barcos abrigavam ainda vestiam as roupas com que foram sepultados - toucas de feltro com penas enfeitando as abas, muito parecidas com chapéus montanheses do Tirol. As múmias portavam grandes mantos de lã com borlas, e botas de couro. Vestigios da Idade do Bronze, suas vestimentas intimas, as roupas de baixo eram tangas sumárias para os homens e saias feitas de fios soltos para as mulheres.

Dentro de cada barco usado como caixão haviam oferendas de sepultamento, entre as quais cestos de palha muito bem trançados, máscaras rituais entalhadas e ramos de efedra, uma erva que pode ter sido usada em rituais ou como medicamento.

Nos caixões femininos, os pesquisadores encontraram um ou mais falos de madeira em tamanho natural, postados sobre ou ao lado dos corpos. Ao observar de novo o formato das estacas de quatro metros que se estendiam da proa dos barcos femininos, os arqueólogos chegaram à conclusão de que se tratava de gigantescos símbolos fálicos.

Os barcos dos homens todos estavam sob estacas em estilo remo. Mas na verdade não era essa sua função, concluíram os arqueólogos chineses: as peças no topo das estacas eram uma representação simbólica de vulvas femininas, o complemento dos símbolos encontrados nos barcos das mulheres. "O cemitério todo estava decorado com símbolos sexuais explícitos" A "obsessão com a procriação" em um terreno inóspito refletia a importância que a comunidade atribuía à fertilidade dizem os estudiosos.

A evidente veneração das pessoas sepultadas no local pela procriação pode indicar que estavam interessadas tanto nos prazeres quanto na utilidade do sexo, se levar em conta que os dois são difíceis de separar. Mas parecia haver respeito especial pela fertilidade, porque muitas mulheres estavam enterradas em caixões duplos, com oferendas especiais de sepultamento.

Dada a vida em um ambiente hostil, a mortalidade infantil deve ter sido muito grande, e também a necessidade de procriar, especialmente devido à situação isolada em que viviam. Outro possível risco para a fertilidade poderia ter surgido caso a população praticasse procriação consangüínea, pois na Idade do Bronze este comportamento ainda não tinha sido firmado como interdito. As mulheres capazes de gerar crianças e garantir sua sobrevivência até a idade adulta devem ter sido especialmente reverenciadas pois o culto à Grande Mãe sempre foi tema recorrente entre os povos antigos, principalmente em grupos tribais em declínio ou com baixa densidade populacional.

Diversos dos itens identificados no cemitério se assemelham a artefatos ou costumes familiares na Europa. Barcos para sepultamento eram comuns entre os vikings. Saias de fios e símbolos fálicos também foram localizados em locais de sepultamento da era do bronze no norte da Europa.

Não há assentamentos populacionais conhecidos perto do cemitério, e portanto é provável que as pessoas vivessem a alguma distância e chegassem ao cemitério de barco. Não foram encontradas ferramentas para trabalho em madeira no local, o que sustenta a idéia de que as estacas tenham sido entalhadas em outro lugar.

A Bacia de Tarim já era bastante árida quanto os moradores responsáveis pelo cemitério chegaram, quatro mil anos atrás. Eles provavelmente viveram lutando arduamente para sobreviver até que os lagos e rios dos quais dependiam por fim secaram, por volta do ano 400 d.C.

Sepultamentos acompanhados por objetos como chapéus de feltro e cestos de palha eram comuns na região até dois mil anos atrás.Não se sabe que idioma os moradores da região falavam, mas acredita-se que possa ter sido o tocariano, ramo lingüístico da família dos idiomas indo-arianos. Manuscritos em tocariano foram localizados na bacia do Tarim, onde o idioma era falado entre os anos 500 e 900 d. C.

A despeito de sua presença no leste, o tocariano parece mais aparentado aos idiomas "centum" da Europa que aos idiomas "satem" da Índia e Irã. A divisão se baseia nas palavra usadas para centena em latim (centum) e sânscrito (satam).

Os moradores da região já estavam presentes dois mil anos antes das primeiras provas quanto ao uso do tocariano, mas existe uma clara continuidade de cultura, comprovada

Os nazistas, no auge de seu poder no séc. XX, investiram grandes somas para que arqueólogos descobrissem suas origens milenares no seio da Ásia. Quem sabe o vale do Tarim abriga o arcano desse povo indo-ariano que fugindo das condições adversas de mudança do seu meio ambiente primitivo, que naturalmente ou por exploração indevida transformou-se em local inabitável e acabou obrigando seus residentes em plena Era do Bronze a empreender suas campanhas de guerra total aos povos vizinhos espalhando suas hordas guerreiras pela Europa e Ásia? Serão desses povos, que cultuavam: as potencias telúricas, os costumes antropofágicos e a desinibição para o cometimento de genocídios e conflitos etnocidas, depois tão comuns na Europa, a herança primordial da guerra total?

Tácito em sua obra “A Germânia” descreve o hábito dos Teutões, povo de comprovada origem indo-ariana: “ VII - Elegem os reis pela nobreza e os capitães pelo valor. Mas o poder dos reis não é absoluto; e os capitães, se são ousados e ilustres e os primeiros na luta, governam mais pelo exemplo que dão do seu valor e pela admiração que provocam do que pela autoridade do cargo. A ninguém é permitido ralhar, prender ou açoitar senão aos sacerdotes, e não como castigo, ou por ordem do capitão, mas como o mandasse o deus que, segundo eles, assiste aos que pelejam. E por este motivo levam para os combates certas imagens e insígnias que tiram dos bosques sagrados. No entanto o que principalmente os incita a ser valentes e esforçados é não constituírem os batalhões e companhias de pessoas ao acaso, mas da família e parentela, e terem perto aqueles que lhe são mais queridos, para que possam ouvir o alarido das mulheres e os gritos dos filhos. Estas são as suas mais santas testemunhas, os seus melhores panegiristas. Mostram as feridas às mães e às mulheres que não tem pavor de as contar nem de chupá-las. “Antes, durante a batalha, elas levam exortações e mantimentos aos que pelejam”.

“VIII – Conta a tradição que, por vezes, as mulheres conseguiram restaurar batalhas quase perdidas, fazendo voltar os exércitos já em fuga, aos quais, expondo-se ao perigo, fizeram ver a escravidão eminente, a qual muito mais temem por amor às esposas. Desta forma se pode ter muito mais confiança nas cidades que por reféns dão algumas donzelas nobres. Supõem que existe nas mulheres alguma coisa de santo e providente, e por isso não deixam de as consultar nem de ouvir seus conselhos. Vimos como, no tempo do Divo Vespasiano, Veleda foi por muitos considerada como divindade. E já em épocas anteriores prestaram culto a Aurinia e a muitas outras, não por mera adulação ou porque lhes quisessem prestar honras de deusas, mas porque as tinham como tais”.

“IX – Adoram Mercúrio sobre todos os deuses, e em certos dias tem por santo sacrificar-lhe algumas vítimas humanas, para aplacá-lo. À Hércules e à Marte fazem com o mesmo fim sacrifícios de animais. (...) Entendem que não é próprio da majestade dos deuses tê-los encerrados entre paredes ou representá-los em figuras humanas. Consagram-lhes muitas selvas e bosques, e dos nomes dos deuses apelidam os lugares mais secretos que somente olham com veneração”.

Os teutões e celtas praticavam com freqüência sacrifícios humanos dedicados aos seus deuses florestais para garantir o sucesso de seus empreendimentos e das suas colheitas. Sua origem asiática marca seus costumes e deidades que possuíam origem ancestral comum, mas denominações diferentes alteradas pelo tempo entre as sucessivas migrações.

Conforme os comentários de Julio Cesar em sua obra sobre as guerras na gália, observou no druidismo celta a semelhança comum de suas crenças com as de gregos e romanos e traçou um sincretismo, nem sempre correto, entre seus deuses e os dos gauleses. Seus deuses podiam ser identificados com Mercúrio (Lugus), Apolo (Grannos), Marte (Camulos) e Minerva (Dea Brigantia). Nas grandes festas que realizavam os celtas ofereciam sacrifícios humanos, para o qual construíam enormes ídolos de vime onde encerravam as vítimas e depois ateavam fogo. As vítimas eram imoladas em honra de Taranis, seu deus do trovão. Para honrar Tutatis, o deus da guerra também associado como "deus da cidade", um ser humano era então afogado em um barril de água. Noutras ocasiões as vítimas eram estripadas ou apunhaladas pelas costas para que os druidas pudessem predizer o futuro pelo estado das entranhas fumegantes ou pela posição dos membros quando deixassem de estrebuchar. Na Notre Dame em Paris foi descoberto em seu altar uma pedra gravada com um touro e três garças imagem associada a Tarvos Trigaranus e a imagem de Esus, um deus lenhador protetor das vinhas, associado pelos romanos a Vulcano e a Júpiter. Dizem que era nesse local que os gauleses praticavam seus cultos e posteriormente os romanos construíram um templo dedicado a Júpiter, antes de ser construída a famosa catedral. Mencionado por Lucano (60d.C.) como um deus tribal exigia por seu culto sacrifícios sangrentos. Seu nome, Esus, está associado ao deus latino Herus que significa "dono" ou "senhor" e aos deuses indo-arianos denominados Asuras.


Após a vitória de uma batalha dispunham os sobreviventes conforme seus costumes. Os prisioneiros mais moços e mais belos eram imolados ao seu deus. Os outros eram atados em árvores e serviam de alvos para as lanças e machadas. Conta-se que comiam a carne e bebiam o sangue das crianças mais gordas aprisionadas do inimigo, e as mulheres eram violadas mesmo quando estavam já agonizantes pelos vencedores. 


Os sacrifícios humanos podiam ter três motivações. O dom humano era oferecido em troca do dom divino. Neste caso, a vítima, sempre voluntária era honrada com o mesmo título que o guerreiro que perde a vida para defender a Pátria, isto é, consagrado como herói. Se o sacrifício atingia criminosos ou prisioneiros de guerra, o pensamento era outro. As vítimas concentravam sobre sí além da mancha do crime ou da derrota em batalha, todas as faltas da tribo que os fez prisioneiros, da mesma forma como os judeus utilizavam o bode expiatório para purificar seus pecados. Ou se sacrificava uma vida pela outra como nos conta Julio Cesar.


Em um manuscrito cristão, o Dindschenchas consta que sacrifícios humanos eram realizados ao pé do ídolo de ouro de Cromm Cruaich adorado na Irlanda, que tinha ao seu redor 12 ídolos de pedra: "É a ele que eram oferecidos os primogênitos de cada ninhada e os rebentos de cada clã".              


Uma proibição singular entre os gauleses, que pertence com certeza aos seus tabús de alternância de poder e majestade, proibia ao filho aproximar-se armado de seu pai; pois resultava que eram criados por familias estranhas ou pelos druidas, costume ancestral que ainda perdurou muito tempo na Irlanda, e que sobreviveu em sua essência na prática européia do internato.


Como faziam os construtores em toda a Ásia, por crença costumavam enterrar uma vítima nos alicerces de uma muralha para garantir sua fortaleza, costume que perdurou até mesmo depois da catequese cristão e é mencionada como prática devocional de santos que se ofereciam espontaneamente para serem enterrados, e assim tornar sacro o solo onde se pretendia construir  o monatério. A alma do voluntário, segundo o relato, seguia diretamente para habitar o paraíso.


Os celtas na época de Roma seguiam para a batalha cantando seus cânticos de guerra completamente nus, precipitando-se contra as legiões romanas para terror dos inimigos. A existência do "culto da cabeça cortada" ao longo de toda a Idade do Ferro, torna clara a raiz antropofágica de suas crenças trazidas dos confins da Ásia pelos seus antepassados e mantida na sua cultura e formação na Europa. Os guerreiros punham as cabeças dos seus inimigos recém decepadas atadas aos carros ao fim da batalha e levavam seus troféus para suas habitações onde as penduravam nas traves como demonstração de sua fúria e poder. No sul da França era comum encontrar em nichos esculpidos nos monólitoscrânios humanos. Cabeças humanas adornavam a entrada de suas vilas e aldeias e os portões dos fortes nas colinas. 


Quase dois séculos antes de Cristo Poseidônios, um viajante grego, não sem espanto relatou que os gauleses guardavam a cabeça de seus inimigos célebres num cofre depois de a ter feito macerar em óleo de cedro, a fim de exibi-la com orgulho aos seus visitantes embevecidos. Outros as fixavam, como ornamentos sagrados nas paredes de suas casas. Posteriormente esse costume foi confirmado nas escavações arqueológicas realizadas no interior da Irlanda do pórtico de um templo celta onde estavam cavados nichos contendo crânios pregados na pedra com uma óbvia intenção cerimonial. Descobertas análogas nas redondezas em imagens de cabeças representadas em baixo relevo com impressionante realismo. Os ossários bretões onde se superpunham as caixinhas onde se guardavam os crânios das pessoas que se pretendia perpetuar parecem uma evolução desse costume. Em ambas as tradições podemos perceber os resquícios do endocanibalismo e do exocanibalismo nas crenças do "culto a cabeça" de parentes e inimigos. Essas manifestações culturais permaneceram vivas até o distante séc. XII, mesmo após a introdução do cristianismo entre os povos que ocuparam a Europa.           


O rei irlandês Aed, vitorioso sobre os daneses em 864, como seus antepassados fizeram nas estepes longínquas da Ásia, amontou as cabeças cortadas dos vencidos numa piramide. Quatro séculos depois, Dermod, rei do Leinster, tendo sido despojado do trono por felonia, chamou os normandos para se vingar e os ajudou a vencer seus compatriotas. Depois seus homens cortaram 200 cabeças, que depuseram aos seus pés. Então ele entoou um canto de triunfo.


Na pérsia estabeleceram estas tribos de origem asiática seus costumes trazidos das estepes e criaram seu império baseado nestes valores nômades, estabelecendo uma das primeiras crenças monoteístas baseadas na eterna luta entre o bem e o mal, da qual seu povo e seus mandatários tinham parte importante na disputa cósmica, e deviam promover a vitória do bem através de suas guerras de conquista que viria impor sua autoridade em boa parte do mundo antigo. Sacerdotes e guerreiros ocupavam as castas superiores e ditavam como deveria ser regulada a sociedade de então. Seu monarca acumulava a função de guerreiro e sumo sacerdote impondo seu poder adquirido por inspiração da deidade. Ao fim da história humana, no final dos tempos, seus reis imaginavam estar destinados a lutar lado a lado com o Salvador Celestial Aúra-Masda e compartilhar com a deidade do triunfo do bem sobre o mal.

A partir do séc. VI a.C. os teutões se abateram sobre a Europa vindos da Ásia, foram expulsando os celtas e outros povos autóctones que habitavam a Europa. Com o nome de Dórios, invadiram e destruíram muitas cidades estado miceanas na Grécia levando toda a região a um período de trevas que se arrastou por aproximadamente 300 anos e finalmente aos poucos se aliaram aos nativos para fundar a cultura da Grécia Clássica. Conquistaram em seus primórdios a península itálica e fundaram Roma. Influenciaram como dominadores a cultura e religião dos povos autóctones relegando à segundo plano o culto à Grande Mãe e introduzindo seus deuses masculinos que passaram a ocupar um lugar predominante e machista no panteão e nos cultos dos povos dominados. As mulheres que até então detinham razoável liberdade em sociedades onde a descendência era matrilinear tiveram seus direitos reduzidos e eliminados nas sociedades patrilineares comuns entre os indo arianos. Suas levas incessantes de emigrações originadas na Ásia até o séc. VI d.C. foram determinantes na derrocada posterior do Império Romano do Ocidente, estabelecendo suas comunidades nas regiões que deram origem as modernas nações européias. Os vikings, terríveis guerreiros de origem teutônica desceram o Volga e criaram na atual Rússia seu reino, enquanto os anglos saxões expulsavam os celtas romanizados das ilhas britânicas para a Cornualha e Gales. Mais tarde seus descendentes, normandos, franceses, holandeses e alemães iriam definir através de suas políticas coloniais a situação geopolítica do planeta com sua ideologia dicotômica, seus exércitos e suas guerras de dominação, impondo de uma vez a cultura dominante do planeta.

Entre as divindades femininas representadas pelos Teutões que estavam vinculadas diretamente a guerra eram as Valquírias as principais, pois era delas a incumbência de levar para o Valhala os guerreiros nobres mortos em batalha e acolhe-los com hidromel o que lhes dava a imortalidade e eram elas que decidiam a sorte dos combates segundo as vontades de Odin. Eram representadas como mulheres nobres montadas em corcéis e armadas com lanças. Nas tradições mais antigas são gigantas temíveis que aparecem em sonhos como presságio de morte iminente, derramam sangue sobre a terra e devoram homens na batalha, podem cavalgar lobos e ter a companhia de aves de rapina. Aparecem com freqüência rodeadas de corvos, animais que se alimentam de cadáveres nos campo de batalha da europa. Apresentam também o aspecto de protetoras dos lares, protegem os jovens príncipes, lhes dão nome e espada, são suas esposas sobrenaturais, lhes ensinam as tradições bélicas, lhes protegem na guerra e os recebem no tumulo quando morrem. Seus nomes significam batalha, a única maneira de o homem ascender ao paraíso é através do combate, só perdendo a vida com a espada na mão poderá usufruir dos cuidados destas guerreiras no Valhala.

Como as moiras na mitologia Greco-romana, as Nornas decidem a sorte dos seres humanos e dos deuses. Visitavam as cortes dos reis para traçar o destino dos príncipes recém nascidos, sendo associadas ao fluxo do destino, ao rio que corre abaixo da Árvore do Mundo, fonte do conhecimento secreto. Em alguns casos são as Nornas mencionadas como três e outros são um grupo maior de divindades. Esta árvore cosmogonica chamada Yggdrasdill possui três raízes. Uma estende-se em direção à nascente mais alta, denominada Urdur, onde os Ases reúnem-se em conselho e onde as Nornas, enquanto fixam a duração da vida dos homens, vertem água que vem da nascente sobre a Árvore, a fim de lhe garantir seiva e verdor sem fim. A segunda raiz estende-se na direção da terra dos gigantes do Frost; sob ela nasce a fonte de Mimir, o primeiro homem e rei dos mortos; nessa fonte residem todo o conhecimento e toda a sabedoria. O próprio Odin para poder beber de suas águas, deveu deixar como penhor um de seus olhos. Quanto à terceira raiz, ela desce até o Nifleim, o Hades escandinavo, onde é constantemente ruída por um dragão. No mais alto ramo do tronco empoleira-se uma águia, enquanto outros animais habitam os ramos mais baixos. Finalmente, Odin segundo a mitologia nórdica passou nove noites sob sua sombra antes de descobrir as runas, ato que faz lembrar a grande meditação do Bhuda sob a figueira sagrada.

Outro culto de divindades femininas difundido era propiciado para as Dises, depois convertido como culto às Valquírias e Nornas, que exigiam sacrifícios humanos em Upsala. Acredita-se que seu culto ocorria no outono, no começo do ano novo, coincidindo com a festividade aos grandes deuses tradicionais das várias tribos.

Seu herói principal é Sigurd, personagem principal do conto popular de cavalaria cantado pelos menestréis na Islandia, Escandinávia e Germania, que derrota a serpente Fafnir usando esperto ardil, com sua espada encantada Gram, numa versão tardia cristianizada do próprio Odin. O monstro Fafnir, um ser encantado, antigo príncipe transformado em serpente pelo uso do anel do poder e da maldade, ainda moribundo lembra o herói que o ouro que lhe pertence é maldito e sina de morte violenta para quem o possue. Seu irmão, o covarde e traidor Regin, rei que desde o início havia incitado Sigurd a cumprir sua promessa de destruir o monstro e saquear sua fortuna, ao perceber sua morte sai do esconderijo retira-lhe para fora o coração e bebe-lhe o sangue. Pede uma graça ao herói, que ele prepare uma fogueira para assar o coração do próprio irmão, pois tinha a intenção de comê-lo. Sigurd assim o fez e ao espumar a carne no espeto ele passou o dedo e levou à boca para verificar se já estava pronta. Imediatamente ao beber do sangue, fonte da eterna sabedoria, percebeu que ele próprio deveria comer o coração da fera. Pica-paus que piavam num arbusto ao lado tornaram-se inteligíveis pelo herói que ao absorver a essência do monstro atingiu um novo nível de conhecimento. Dizia um:- Lá está deitado Regin e quer trair esse que lhe tem confiança (como atraiçou o irmão Fafnir) Então outro falou: - Sigurd deve decepar-lhe a cabeça, e assim, será sózinho senhor de todo aquele ouro. E ainda outro recitou: - Ele deve cavalgar até a caverna de Fafnir para apanhar todo o ouro que ali está. E outro ainda lembrou: -Sigurd não será tão sagaz como imagino se deseja poupá-lo depois de ter matado o irmão dele. Então outro falou: - Ele tomaria a melhor decisão matando-o e possuindo sózinho o tesouro. Concordando Sigurd falou: - Não vou ter a desdita de ser morto por Regin, mas, antes os dois irmãos terão o mesmo destino. E assim empunha a espada Gram e corta fora a cabeça de Regin. E, depois, comendo um pedaço do coração da serpente e guardando o resto sai sem demora em busca do seu espólio de batalha escondido na cave do monstro.        

Cronos castra Uranus

De forma análoga, nas lutas infindáveis de sucessão entre parentes próximos, o mito do parricídio é recorrente aos povos indo-arianos, e muitos registros ficaram gravados em suas lendas cosmogônicas. Segundo a mitologia dos Gregos, por exemplo, Cronos cortou fora o pênis do próprio pai, Uranus, enquanto ele dormia com sua mulher, Gaia a Terra, que sozinha o havia gerado, e lançou-o para o céu. Sua mãe secretamente resolve libertar os filhos ( Ela é a Natureza e, como tal, não pode impedir os fenômenos da natureza de seguirem seu curso ). Cronos, o tempo, indomável filho de Gaia e Uranus, revoltado contra o pai, por esse fecundar incessantemente a mãe e pela devastação constante promovida pelos filhos deste no planeta comete esta imolação. Sua arma é uma foice, que a própria terra havia afiado para cometer o ato. A foice simboliza a morte, mas é seu reino que finda dando lugar a nova era de Cronos e ao inexorável caminho da evolução. A foice é também símbolo de renascimento, como instrumento da colheita, uma nova esperança que renasce. Ao cair na Terra o sangue de Uranus ainda mais uma vez a fecunda. Seu pênis caiu no mar ao largo de Chipre, segundo o mito, onde a espuma que levantou deu nascimento a Afrodite.

Cronos, deus primordial, a fome devoradora da vida, devorou todos os filhos de Rhea (Cibele), sua mulher e irmã que ambos haviam concebido. Por fim quando nasceu o sexto filho, Zeus, Rhea enganou-o dando-lhe uma pedra para engolir em lugar da criança. Zeus então deu a Cronos um emético, fazendo-o vomitar pedra e filhos, que ainda estavam vivos, e, com a ajuda dos Titãs lhe fez guerra.

Cronos

A queda de Cronos possui mais de um sentido. Seu reinado se assemelha a fase pré-consciente da humanidade e representa o desejo insaciável de evolução. Nesse período que simboliza o surgimento da estrutura social, a vida não compreende ainda a si mesma e se assemelha a um caldeirão confuso de elementos diferentes da existência como a conhecemos. Zeus então nesse mitema ordena o universo definitivamente. Ele é o principio divino da espiritualidade, a nova ordem que surge. Destronando o próprio pai, Zeus estabelecerá na Terra a base das relações entre todos os seus elementos. Nem monstros, nem gigantes, nem cegos como os primeiros filhos de Gaia, os deuses Olímpicos representam miticamente, o surgimento do Homo Sapiens e seu domínio sobre o planeta, na evolução das espécies. Isto é: um ser senciente, falante, bípede e criador feito a semelhança de suas divindades antropomorfas.

O triunfo de Zeus representa para os filósofos clássicos a vitória da Ordem e da Razão sobre os instintos e as emoções desenfreadas e na verdade é o marco do pátrio poder. É ele quem “abre aos homens os caminhos da razão” e ensina-lhes que o verdadeiro conhecimento só é obtido a partir da dor. É o supremo magistrado de onde emana toda a justiça universal premiando os esforços honestos e punindo as impiedades. Sua imagem é uma projeção de povos que sofreram com os desmandos e as guerras de uma longa era de trevas que durou aproximadamente três séculos, quando ficaram a mercê de inimigos estrangeiros e mergulhados na guerra civil sofrendo fome e escravidão. No período posterior sua imagem adquiriu contornos próprios de restabelecimento dos valores da civilização dominante que foram novamente retomados após os anos de sobrevivência destas comunidades em condições precárias e subumanas. São os mitemas reflexos exatos deste período, o que restou de antigos relatos transmitidos oralmente pelos mais velhos em volta de fogueiras onde uma antiga civilização, chamada micenica, quase havia retornado à pré-história. Era o que restou de sua cultura após até mesmo o esquecimento de sua escrita nativa. Homero e Hesíodo, trezentos anos após a Idade das Trevas já no renascimento da hélade buscaram registrar os cantos que os pastores recitavam para seus pares nas noites incertas onde se reuniam para afugentar o medo que a existência fugaz lhes impunha.

A pedra que havia sido engolida por Cronos caiu em Delfos e foi então cuidada pelos homens, coberta de lã, passou a ser usada para influir nos fenômenos da natureza e propiciar chuvas tão necessárias para as colheitas. Sua origem natural deve ser um meteorito e foi confundida com um raio pelos antigos, pois sua queda em um céu limpo deve ter gerado um estrondo assustador. Assim Delfos foi considerado pelos antigos povos mediterrâneos o centro do mundo, a pedra com formato fálico denominada Omphalos demarcava o umbigo do mundo, Era em seus primórdios templo dedicado a Gaia, e o culto da serpente píton que ocupou por bom tempo o santuário antes de ele ser dedicado ao viril Apolo que expulsou a serpente, deus trazido pelo invasor.

Os reis estrangeiros, invasores, trouxeram seus costumes bárbaros, e impuseram seus deuses masculinos, criando sociedades “civilizadas” onde o convívio entre os homens afeitos às constantes guerras suplantava o convívio heterossexual, já que a mulher ficava sujeita a vida de geratriz e ou concubina do guerreiro em eterna campanha militar. A sucessão patrilinear implantada pelos invasores indo-arianos levava a uma constante pressão familiar entre o monarca e seus sucessores ávidos pelo poder. O rei quando perdia seu poder era então sacrificado quando percebiam nele acessos de impotência, ou quando as intempéries punham em dúvida seus poderes mágicos para garantir o sucesso das colheitas. Por isso matavam-no. 

Este é o sacrifício que o rei Minos se recusou a fazer quando reteve o touro recebido de Poseidon e recusou seu sacrifício. Na Grécia a duração do reinado dependia de uma avaliação que ocorria de oito em oito anos. Sem ocorrer em uma avaliação precipitada, afirma Campbell em sua obra: "O Herói de Mil Faces", que o tributo de sete moças e sete rapazes, que os atenienses eram obrigados a enviar à Creta a cada oito anos tinha alguma relação com a manutenção do poder real por outro ciclo semelhante. O sacrifício do touro que devia ser consagrado ao deus, mas foi poupado pelo rei implicava a igual imolação do soberano segundo o padrão herdado. Mas ele ofereceu como substitutos da oferenda os jovens e as virgens atenienses. Querem os estudiosos que nesses rituais onde o minotauro era representado como um homem robusto com cabeça de touro, suas vítimas eram devoradas em uma cerimonia antropofágica entre a corte e seus sacerdotes. Essas práticas de substituição parecem ter-se generalizado aos poucos em todo o mundo antigo, perto do final do grande periodo dos primeiros estados hieráticos, no decorrer do terceiro e segundo milênio antes de Cristo.

Na casa de Atamas como já vimos o filho mais velho de cada geração da linhagem não podia entrar no salão de banquetes sob pena de ser sacrificado, embora todos eles sem exceção assim o tenham feito. Isto leva a crer que o mistério do culto ao Urso esteja relacionado a Cronos e ligado com o rito da sucessão real. Pois conta-se que Cronos foi o único deus que viveu desveladamente entre os homens. Isso talvez signifique que ele era um daqueles reis “sagrados” que executam seu predecessor, adquirem seu título casando com a rainha viúva e morrem violentamente ao fim do reinado.

Da Idade das Trevas grega ecoam os mitos de devoramento. Em particular um fala do personagem Licaón que serviu em uma bandeja à Zeus seu próprio neto, Arkas, filho do deus com Calisto, princesa da Arcádia e foi punido pela ousadia com a metamorfose em lobo, de onde provem seu nome. Nesta época inocentes animais eram sacrificados nos redis, por puro divertimento do rei e de seus cinqüenta descendentes que cometiam todos os tipos de barbaridades no reino. Sem cometerem falta alguma, camponeses e escravos eram espancados até a morte. Para coroar suas tenebrosas atividades o rei e seus príncipes serviam macabros banquetes onde crianças despedaçadas eram servidas. Na versão de Ovidio em “Metamorfoses”, fala Júpiter sobre a iniqüidade dos homens antes do dilúvio e menciona Licaón como exemplo do mal: “Cheguei às terras e à morada nada hospitaleira do tirano da Arcádia, quando à tarde, o crepúsculo traz a noite. Anunciei aos suplicantes por sinais misteriosos que chegara um deus, e o vulgo começou a orar. Licáon a principio riu desta respeitosa devoção, e disse após: “Verificarei se este suposto deus não é um mortal e de maneira bem clara. “A verdade tornar-se-á patente”. Preparava-se para matar-me desprevenido, quando o sono me dominasse: assim quer experimentar a verdade. Não se contentou com isso; os molossos, povo que lhe devia sujeição haviam lhe mandado reféns; passa um deles a fio de espada, depois divide seus membros ainda palpitantes, amolece uma parte em água fervendo e leva a outra ao fogo para assá-la. No mesmo momento que esses despojos são servidos, lanço uma chama ultriz contra o dono da casa e aos penates dignos dele, e faço desmoronar sua morada. Ele próprio foge, aterrorizado, e ulula refugiado no silencio dos campos; em vão se esforça para recuperar a fala; dele próprio a raiva acorre à sua boca, e seu gosto habitual pelo morticínio se volta com os animais, e também agora se deleita com o sangue. “As vestes se transformam em pelos, em patas os braços; faz-se lobo, mas guarda vestígios da antiga forma; a mesma cor grisalha, a mesma fúria na cara, o mesmo brilho nos olhos, a mesma imagem da ferocidade”. Assim foram punidos o rei e seus descendentes. Esta com certeza é uma das histórias mais antigas sobre o Lobisomem, homem que por herança ou feitiçaria era transformado em lobo a cada sexta-feira de lua cheia, que aterrorizava a imaginação dos aldeões na Idade Média e continua imagem viva na cinematografia contemporânea. Não podemos esquecer o tom moral da narrativa sobre a questão antropofágica como tabu proibido pelo Deus, uma das razões para o Dilúvio com que o deus pretendeu castigar a humanidade, e causa da metamorfose que transforma o humano em seu arquétipo mais bestial.

Arcas sobreviveu ao episódio, seus pedaços foram reunidos novamente pelo deus e foi lhe devolvida a vida. Segundo se conta foi ele quem ensinou os povos do Peloponeso a fiar a lã, cultivar o trigo e assar o pão, sendo um rei divinizado. Muito tempo mais tarde já adulto caçava na floresta quando veio a encontrar a mãe, a ninfa Calisto que tinha sido violada por Zeus, e foi transformada em ursa pelo ciúme de Hera a esposa divina. Pensando tratar-se de uma boa presa ele a perseguiu até o santuário de Zeus no monte Licaón. Era lei que aquele que penetrasse no recinto sagrado fosse morto e que a ninguém era lícito lançar uma sombra dentro dele. Em conformidade com o acontecido Zeus compadecido pela tragédia enviou Calisto e Arcas para os céus como as constelações da Ursa Maior e a estrela Arcturus.

Estes reis sagrados e suas dinastias, transformados em mitos do passado nas sagas heróicas, eram na maioria das vezes lembranças mantidas pela tradição oral sobre os guerreiros invasores que haviam se transformado na elite dominante e mantinham seu poder temporal sobre os vencidos. Seu poder em princípio devia ser dividido entre dois mandatários de mesma estirpe nobre, metade do ano governava um e na outra metade governava o rival, e este período foi sendo ampliado para um ano inteiro e por fim o rei mandava sacrificar os próprios filhos a fim de prolongar seu mandato para quatro e até oito anos, já que a descendência era matrilinear e a progenitora pertencente a outro clã diferente do rei. Este costume é uma das explicações dos mitos de Licaón e Cronos, que engoliam os próprios filhos para manterem sua condição de macho alfa dominador e evitarem ou postergarem o próprio sacrifício. Assim também fez Tântalo ao servir o próprio filho, Pelops, aos deuses e foi castigado com o eterno suplício da fome e sede eterna nas profundezas do Tártaro. Ou no mito de Tideu que arrebatado no combate do campo de batalha e mortalmente ferido perdeu sua condição de herói e sua imortalidade alcançada pelas armas ao ser flagrado por Atenas comendo o cérebro de seu inimigo Melanipo cuja cabeça foi decepada por Anfiarau, o adivinho, que teve a repulsa da deusa como afirmação do tabu contra o canibalismo e o respectivo castigo. A própria deusa em seu nascimento segundo narra Hesíodo foi gerada de uma relação teofágica: Zeus engoliu Métis, a deusa da inteligência, quando esta se encontrava grávida, e Atenas veio ao mundo do crânio de seu pai, destacando o caráter arcaico, "selvagem", do tema do devoramento.  

Despedaçado pelo pai, Pelops foi servido como iguaria aos deuses, pois Tântalo queria experimentar os poderes dos deuses. Todos eles logo perceberam o que lhes era servido, menos Demeter que, desesperada com o rapto da filha, distraída comeu uma espádua do menino. Os deuses, segundo o mito, reconstituíram o menino e fizeram-no voltar à vida, e na espádua devorada, colocaram uma de marfim. De seu nome originou-se o nome da região grega chamada Peloponeso.

Atreo e Tiestes, filhos de Pelops e netos de Tântalo, disputaram o trono de Argos. Quando Atreo impediu que seu irmão assumisse o trono. Tiestes seduziu Aérope, esposa do irmão reinante. Por vingança, ao tomar conhecimento da traição, Atreo convidou Tiestes para um banquete onde serviu os filhos do irmão. Os descendentes de Atreo foram Agamenon e Menelau, os Atridas responsáveis diretos na guerra contra Tróia. Suas esposas, Helena e Climenestra foram conhecidas como adúlteras famosas. Egisto, um dos filhos de Tiestes que sobreviveu à chacina, enquanto o Atrida lutava em Tróia seduziu e foi cúmplice de Cliemenestra na morte de seu primo Agamenon, quando este retornou vitorioso de Tróia. A vingança e a antropofagia era o moto dos relacionamentos entre os soberanos em constante conflito de relações. Comportamento similar ao de outros povos guerreiros conhecidos no mundo todo.

A Ilíada obra com raízes nos primórdios da Idade das Trevas atribuída a Homero conta que, durante a guerra de Tróia, Aquiles enfurecido sacrificou 12 troianos sobre a pira funerária de seu querido parente e companheiro de armas, Pátroclo, e Aristómenes ofereceu 300 vítimas à Zeus.

Conta o mito sobre o nascimento de Dioniso Zagreu que quando a grande deusa Démeter chegou à Sicília vinda de Creta, com sua filha Perséfone, que ela tinha concebido de Zeus de forma ilícita, descobriu uma caverna perto da fonte de Kyane, onde escondeu a jovem, colocando para protegê-la as duas serpentes que eram normalmente atreladas à carruagem da donzela. De seu esconderijo Perséfone começou a trançar um grande manto de lã que deveria ter estampado um belo desenho do Universo, enquanto sua mãe Deméter tramava que o pai dela, Zeus, descobrisse sua presença. O deus aproximou-se de sua filha na forma de uma serpente e do intercurso entre os dois ela concebeu um filho dele, Dioniso, que foi parido e alimentado na caverna. Os brinquedos do menino eram uma bola, um pião, dados, algumas maçãs de ouro, um pouco de lã e um zunidor. Mas também foi-lhe dado um espelho e. enquanto se admirava encantado, pelas suas costas, aproximaram-se furtivamente dois titãs enviados pela deusa Hera, a eterna esposa ciumenta de Zeus, que vieram para matá-lo. Eles estavam pintados com argila branca ou greda como faziam os antigos nos rituais. Aproveitando a distração do menino, partiram-no em sete pedaços, ferveram as porções em um caldeirão apoiado sobre um tripé e as assaram em sete espetos. Quando haviam acabado de imolar o seu divino sacrifício, menos o coração que fora resgatado antes pela deusa Atena, tudo havia sido devorado. Zeus, atraído pelo odor de carne assada, entrou na caverna e, ao perceber o acontecido, fulminou com um raio os dois monstros canibais. A deusa Atena, compadecida, entregou o coração do menino ao pai, que segundo uma versão do milagre, engoliu o orgão vital, e deu a luz ao próprio filho assim renascido. Os titãs eram seres divinos de uma geração anterior aos deuses Olímpicos. Eles eram filhos do Céu e da Terra, e de dois deles, Cronos e Réia surgiram os deuses. Eles são uma reminiscência dos deuses e mitos de uma religião anterior ao do panteão Olímpico e os episódios nos quais aparecem têm com frequencia características primitivas dos antigos rituais antropofágicos similares aos encontrados nas Américas e na Austrália e remontam ao passado pré-histórico de migrações desses povos.



Sobre esse mitema Jung comenta em sua obra "Psicologia e Alquimia": "Foi preciso que um Nietzsche viesse desnudar em toda a sua fragilidade a concepção ginasiana que o homem europeu nutria em relação à Antiguidade! Sabe-se o quanto Dioniso significou para ele! Devemos levar a sério o que o filósofo alemão disse a respeito do deus - e mais ainda: tudo o que lhe aconteceu. Sem dúvida alguma, no estágio preliminar de sua doença fatal, já previra que a lúgubre sorte de Zagreu lhe estava destinada. Dioniso significa o abismo da diluição passional, onde toda a singularidade humana se dissolve na divindade da alma animalesca primordial. Trata-se de uma experiência ao mesmo tempo abençoada e terrível. A humanidade, protegida pela cultura, acredita ter escapado dessa experiência, até o momento que se desencadeia uma nova orgia de sangue, provocando o espanto dos 'bem pensantes' que não tardam a acusar o capitalismo, o armamentismo, os judeus e os maçons (texto escrito na primavera de 1935)     

Apropriar-se das virtudes do herói através de sua carne era por tabela absorver as qualidades do deus de quem acreditavam provir seus atributos. As bacanais gregas, festividade de origem asiática, em honra a Dioniso, à época das vindimas, levavam os comparsas a devorar as carnes de animais  cruas; cabritos, touros, pavões-reais em rituais sangrentos que no seu início eram  com certeza realizados com vítimas humanas desmembradas que personificavam Dioniso.


Nos ritos totêmicos comuns  a esses povos em sua genesis primitiva, posteriormente esquecida  em seu sentido com o passar dos tempos, devem se levar em conta dois elementos constantes: o disfarce no deus e a posse de seu nome sagrado. Como o objetivo do sacrifício deve ser divinizar seus participantes que buscam parecer-se ao deus, eles se apropriam de seu nome e utilizam as peles dos animais que lhe são sagrados como uma memória tribal do clã quando o deus era a personificação pura do animal símbolo. Assim, por exemplo, as mulheres atenienses que celebravam o culto de Artemis Ursa, se vestiam com peles de urso e se davam o nome da divindade; as Menades, que sacrificavam o gamo Penteu, se adornavam com as peles desse animal. Até nos cultos posteriores se sabe que os fiéis do culto à Baco tomavam o nome de Bacoi.       
Praticando este rito omofágico, isto é, alimentar-se de carne crua, os gregos acreditavam unir-se ao deus em comunhão, participar de sua personalidade. Como os Tupinambás, ao comerem pedaços do prisioneiro-herói, manifestavam os mesmos desejos de incorporação dos seus poderes heróicos, assimilando as forças divinas da valentia do adversário. Similares costumes tinham os povos euro-asiáticos, em seus rituais mais antigos e pouco conhecidos que, hoje se imagina, foram difundidos por milhares de anos de peregrinações na face da terra para os quatro quadrantes pelos caçadores coletores. Porém, é sabido que, o devoramento dos animais por esses povos, nas festas do vinho, nada mais era, que uma fase mais adiantada desses ritos, pois, anteriormente, na Idade das Trevas grega, nada, com certeza, incorporava melhor ao deus que um homem e nas primeiras orgias deste gênero, trazidas pelos invasores e assimiladas pelas péssimas condições de vida de uma cultura moribunda, as vitimas deveriam ser humanas. 

Assim também faziam os povos polinésios, quando ofereciam sacrifícios aos seus deuses, entregavam-se por vezes a antropofagia, prática conhecida das populações insulares do Pacífico, como já vimos anteriormente.

Os cronistas destacaram, nas cenas antropofágicas, o importante papel das mulheres, seu furor e voracidade. Nas cerimônias mencionadas, as mulheres se exacerbavam através de frenética participação nas orgias que representavam em suas culturas agrárias e pastoris, a morte e a ressurreição dos deuses. Conta a mitologia sobre o rei Penteu que governava sobre Tebas e quis proibir o culto à Dioniso para moralizar o comportamento do povo contra a vontade das suas mulheres que dedicavam atenção total ao ritos dedicados ao deus. O deus levou-as ao seu refúgio nas montanhas e fazendo-as beber e dançar freneticamente, por vingança, pensando em ajustar contas com as irmãs de sua mãe, enlouquece as mulheres e embota seu raciocínio, nelas incutindo profundo ódio ao rei. Assim quando ele mais uma vez se apresenta e tenta restaurar a ordem perante a multidão inebriada, as mulheres, inclusive sua mãe Agave, caem-lhe em cima e despedaçam-no a dentadas acreditando que ele fosse um leão. Sua própria mãe arranca-lhe a cabeça e leva-a para a cidade. Ao voltarem a si, diz o mito, foram tomadas de horror pelo ato criminoso.


Dioniso manteve as características das divindades pré-históricas que chegaram até os tempos históricos. Suas raízes são, segundo Heródoto, na Trácia onde era denominado Sabázios, o que denuncia suas origens nas remotas paragens asiáticas de onde esse povo emigrou.  Seu culto extático retinha a herança arcaica: ritos que compreendiam as máscaras teriomorfas, os símbolos fálicos da falofórias, o sparagmós (o despedaçamento da carne), a mania, a omofagia, a antropofagia e o enthousiasmos que é a identificação com o deus. Assim sua penetração na cultura grega como um resíduo da pré-história, originado nas planícies da Ásia, adquirindo total representação e uma vez integrado na história espiritual dos gregos, não parou de evoluir em novos valores religiosos na hélade.     

No mito relacionado a outro herói grego, Orfeu, após suas aventuras no Hades para salvar Eurídice do seu destino funesto e vagar pela Trácia consternado pela perda da amada, enfim perde a vida nas mãos das Bacantes que inebriadas e apaixonadas perdidamente pelo herói, tentam seduzi-lo e ao não conseguir seu intento, enraivecidas perseguem-no pela floresta e quando conseguem apanhá-lo estraçalham suas carnes. Como herói civilizador foi atribuído ao seu reinado afastar os Trácios da antropofagia e ensinar-lhes as artes úteis. Era um antigo deus da grécia setentrional, cuja morte violenta e ressurreição constituíam os artigos da fé de um milenar culto místico. Este culto teve um êxito extraordinário em todo o mundo grego e na Itália meridional e serviu de inspirarão para Pitágoras e Platão que tentaram explicar seus mistérios à luz do conhecimento da época.


O orfismo ensinava uma doutrina de pecado original. A alma estava encerrada no corpo físico como uma tumba ou prisão como castigo divino de uma antiga falta cometida pela humanidade, pelos titãs, antepassados dos homens, que haviam matado e devorado o jovem Dioniso Zagreu de forma traiçoeira.


Na Trácia, o deus urso era denominado Salmoxis, e os trácios, povos de origem ariana que dizem possuíam olhos azuis e cabelos ruivos, enviavam-lhe um mensageiro de quatro em quatro anos atirando um homem para o ar e aparando-o nas pontas de suas lanças. Segundo Hérodoto, que chamava de bárbaros seus costumes, os Trácios Apsintios adoravam seu deus da guerra, Plistore, representado por eles sob a forma de uma espada, e assim como os Citas costumavam sacrificar a centésima parte de seus prisioneiros degolando-os num vaso para embeber as espadas no sangue dos mesmos. A este povo guerreiro e beberrão são atribuídos os cultos mais antigos à Dionisos e Orfeu.

Os Cilícios também rendiam ao seu deus da guerra um culto igualmente bárbaro. Dependuravam a vítima, homem ou animal, numa árvore e ao afastarem-se a uma determinada distancia, matavam-na a golpes de dardo.

Antes de Salamina, em 480 a.C., quando os gregos venceram os persas na memorável batalha marítima, os atenienses, para propiciar a vitória nas armas executaram sacrifícios humanos combinando o ritual repugnante com uma barbaridade selvagem, contam os historiadores da época. Plutarco afirma em sua obras "Vidas Paralelas" que Temístocles mandou sacrificar três cativos ao deus Dioniso para favorecer o combate aos gregos, a conselho do adivinho Eufrantides.

Não é de surpreender que o historiador Tito Livio afirmasse que Aníbal, o grande general cartaginês tenha feito seus soldados comer carne humana para incrementar sua ferocidade no combate contra os romanos. Cartago tinha então uma estátua de bronze de Moloch, de tamanho colossal, destinada a receber o sacrifício de vidas humanas, preferencialmente crianças. Assírios, fenícios, filisteus, hebreus e cananeus por séculos haviam lhe prestado homenagem em seus respectivos países.

A era do culto a Cronos, época obscura trezentos anos anterior aos acontecimentos de Salamina, é comumente caracterizada principalmente pelo matriarcado, pelas práticas canibais e pelo incesto. As razões para o canibalismo vão desde incorporar as virtudes do morto comendo-o numa comunhão plena, com as devidas ritualizações, até a fome extrema em condições adversas pelo caos reinante ao final da era do bronze com as constantes invasões ou mesmo o gosto adquirido pela carne humana ou ainda o desejo de vingança ancestral pela competição no meio como faziam os Tupis e Astecas das Américas. Este comportamento tabu com o passar das gerações foram amalgamados na tradição e transmissão oral e sacralizados pelos antigos através da idéia de punição dos deuses para mitigar sua culpa e regular sua sociedade e as evidencias disso encontram-se nos conteúdos desses mitos que chegaram até nós.


Como cultura belicista permanece até hoje no inconsciente coletivo dos povos de origem européia, está presente em seus mitos e tradições mais caras, são costumes que se refletem de forma marcante nos acontecimentos históricos recentes da Europa, que através da ideia do conflito permanente lançou as bases de uma civilização ocidental hierárquica e competitiva e influenciou sucessivamente os pensamentos imperialista, mercantilista e posteriormente o capitalista, evolução natural do processo antropofágico transformando canibalização em exploração de recursos naturais e de mão de obra cativa e barata. Seus sacrifícios se perpetuaram nas milhares de vítimas que sucumbiram nas muitas guerras coloniais, religiosas e ideológicas que cobriram de sangue o continente europeu em êxtases patrióticos compulsivos, com reflexos diretos até hoje. 


Dizem habitualmente que como Osíris, reis divinizados que ocuparam grandes cargos ou que foram valentes heróis, voltam após a morte, ressuscitam quando mais uma vez suas façanhas heróicas forem necessárias para proteger seu povo. O rei Arthur das fábulas celtas é um destes casos. Seu nome significa “urso” em gaélico e como tal não está morto, mas adormecido em sua morada na ilha de Avalon, assim como Cronos na ilha de Ogygia no mar de Cronos, no Ocidente, onde o sol se esconde.


Os primeiros guerreiros anglos saxões também acreditavam em um rei de origem divina semelhante à de seus ancestrais da Pérsia e da Índia. Em seu sistema de crenças seu soberano possuía poderes criativos e força destruidora acumulando as funções de guerreiro e sumo sacerdote. Eles consideravam seu líder descendente direto de Wotan ou Odin o mais alto deus do panteão teutônico. Wotan podia ser sábio e bondoso, mas tinha também uma face feroz e militarista, lembrando muitas outras deidades conhecidas das culturas indo arianas e semitas. A comunhão de seu rei com as forças divinas é que garantia a prosperidade e a segurança de seu reino. Vivia o rei em comunhão mística com seus deuses e com as forças da natureza. Chamava sua força divina de “Luck” (Fortuna). Aonde fosse sua Fortuna ia seu reino.

Nos primórdios de sua civilização quando o rei perdia sua Fortuna, era então sacrificado, e um novo homem, abençoado pela Fortuna e da mesma estirpe sagrada era eleito pelos pares. Após a morte sacrificial o rei se transformava em deus. Na esfera sagrada além tumulo ele continuava a zelar pelo seu povo e emitir oráculos através dos seus descendentes.

No antigo Egito, o próprio Faraó foi instado a suicidar-se para assegurar a marcha regular do cosmo, crença similar à dos Astecas e Maias para realizar seus sacrifícios humanos. Lá uma jovem virgem era periodicamente jogada no rio Nilo e afogada para garantir suas cheias e consequentemente a fartura das colheitas.

No Tibet a realeza sagrada foi instaurada no séc. VI d.C.. Os monges budistas entronizavam o rei numa religião que misturava o animismo primitivo cultuado pelo povo e as crenças no Buda. Ele era denominado DharmaRaja, a personificação do divino no terreno. Sua posição era simbólica, seus ministros cuidavam da organização administrativa e militar do reino, enquanto os sacerdotes cuidavam das necessidades religiosas dos crentes. Sua vida era de um ascetismo monástico, intocado dos assuntos mundanos e do contato com o sexo oposto. Caso não cumprisse esse ideal e sua conduta deixasse a desejar a seca poderia prejudicar o plantio e a desgraça cairia sobre o reino.

Novos vasos mortais eram preparados para a sucessão do “iluminado” e quando seu predecessor alcançava os treze anos de idade o monarca era sacrificado. Assim o mundo voltava a ficar imaculado como havia sido ao sair das mãos dos deuses. Após sua morte o antigo monarca virava um espírito ancestral divino e ocupava o vaso do predecessor vivendo na pessoa do novo rei. Todos os reis tibetanos ficavam unos com o primeiro rei mitológico ancestral que na pré-história descera da luz para instaurar o Dharma (a lei) no plano físico.

Assim também era considerado o imperador da China, sua pessoa física e espiritual representava o centro do universo. Como Filho do Céu ele governava por mandato dos Céus. Seu palácio tentava duplicar o plano da Criação e a disposição interna dos templos e acomodações representava o Cosmos. Seu poder se estendia em radial além do tempo e do espaço profanos. Do outro lado das fronteiras do reino só existia o caos e a morte.

Na montanha sagrada o imperador era sacrificado cerimonialmente através de um substituto e renascia. Assim todo o universo voltava a condição original e regenerado restituía o poder do imperador para cumprir seu mandato divino e seguir as ordens do Céu. Sua missão era derrotar as forças do caos e ampliar as fronteiras do mundo ordenado. Dentro de suas fronteiras promover a abundancia, a fecundidade, a paz entre seus súditos. Com seu mandato divino manifestava com propriedade por igual compaixão ou ira como reflexo direto da ordem cósmica ora benevolente ou violenta. Dentro do ideal taoísta seguido na tradição chinesa se o interior do imperador estava em harmonia seu reino seria reflexo direto desta diretriz no mundo exterior.

Nas tradições de grupos étnicos distintos podemos encontrar o arquétipo do velho rei imolado em sacrifício, rito diretamente associado aos costumes ancestrais antropofágicos destes povos que como fazem outros primatas superiores ao perceber que o macho alfa já não consegue exercer sua liderança botando em risco a segurança do bando, é desafiado por um jovem reprodutor no auge do vigor físico que disputa o controle das fêmeas e caso este vença mata ou mais comumente afasta do bando o derrotado que vira pária e fica a mercê da natureza hostil sem a proteção dos seus.

O reflexo destes costumes relacionados com a busca da sobrevivência do bando fez com que algumas culturas tivessem um tratamento particularmente impiedoso com os idosos. Entre os esquimós e em algumas vilas afastadas do Japão onde a fome é uma ameaça constante nos períodos onde as temperaturas baixas e o tempo inclemente prejudicam a obtenção de alimentos é costume deixá-los a própria sorte ao tempo, pois seu sustento e sua incapacidade de auxiliar na coleta de alimentos os tornam um peso para a comunidade que deve dispor dos mais velhos para a sobrevivência dos mais novos. Uma visão mais piedosa não passaria na cabeça destes povos, a vida inclemente molda seus comportamentos. No caso especifico dos esquimós acreditam propiciar alimento ao predador com a carne do idoso e com isto garantir uma caça em boas condições para os seus. Reflexo de uma idéia antropofágica antiga que foi moldada ao seu sistema de crenças particulares levando em conta o meio ambiente hostil.

Outro tipo de antropofagia muito difundido nas culturas humanas conhecidas é a absorção dos parentes falecidos num ritual totêmico que visa a ritualização da morte. Os yanomanis quando perdem um ente querido usam seus ossos torrados e triturados para fazer uma beberagem que tomam em honra do morto em sinal de respeito pela sua memória e assimilação de sua essência vital. Entre os católicos no ato simbólico de consagração do pão e vinho na missa ocorre ritual semelhante de forma simbólica quando bebemos o sangue e comemos a carne do Cristo.

Assim enquanto no exocanibalismo se manifestava no ato recorrente da vingança contra os inimigos que compartilhavam dos mesmos valores de cultura e etnia de origem ancestral comum mas de tribos diversas quando então reafirmavam sua ferocidade guerreira. Estes povos guerreiros acreditavam neste ato estar possuídos do espírito do jaguar que os levavam a despedaçar e devorar suas presas, os inimigos mortos em combate ou feitos prisioneiros

Já no endocanibalismo existia uma motivação respeitosa: quando se reduziam a pó os ossos de um morto e misturavam ao caulim, a cerveja de mandioca, que bebiam os familiares do defunto, pois acreditavam que os ossos continham a essência vital do espírito da pessoa que se perpetuaria nos vivos seus parentes que haviam consumido a beberagem sagrada


"Tudo o que é morto torna-se pai" Relata Campbell sobre os mitos de iniciação na Melanésia: "Daí vem a veneração , em comunidades de caçadores de cabeça (na Nova Guiné, por exemplo) das cabeças trazidas para casa depois de expedições de vingança. Daí vem a irresistível compulsão de fazer guerras: o impulso de destruir o pai transforma-se continuamente em violência pública". Os velhos homens da comunidade ou da raça imediatas se protegem dos filhos em crescimento, e de sua delinquência, por meio da magia psicológica de suas cerimônias totêmicas. Eles representam o pai ogro (deus canibal) quando "raptam" os meninos de suas mães e nos ritos de passagem abrem incisões nos braços onde já existem cicatrizes de antigos rituais e oferecem seu sangue aos jovens quando então revelam-se igualmente a mãe nutridora. Estabelece-se então o equilíbrio dos opostos, o novo paraíso. Mas este não incluí as outras tribos, ou as raças inimigas tradicionais, onde a agressão é sistematicamente projetada. Assim todo o conteúdo pai-mãe "bom" é projetado para dentro da comunidade familiar e o conteúdo "mau" projetado para fora, além da tribo, para sua vizinhança imediata.


E continua Campbell: "É frequente que os homens que deram o sangue desmaiem e fiquem em estado de coma durante uma hora ou mais em consequência da exaustão. "Anteriormente", escreve um observador, "esse sangue bebido cerimonialmente pelos noviços era obtido de um homem, morto com esse propósito, sendo comidas também as porções do seu corpo". "Nesse caso chegamos tão próximos de uma representação ritual do assassinato e devoração do pai primal quando poderíamos chegar".


E assim os cultos totêmicos, tribais, raciais e agressivamente messiânicos promovem em seus ritos o divórcio entre o desejo (o amor) e o ódio, numa solução parcial. Neles o ego é ampliado, e assim, em vez de pensar apenas em si o individuo torna-se dedicado a sua sociedade como um todo. O resto do mundo, isto é, toda a humanidade é deixada de fora da sua esfera de empatia e comprometimento pessoal, pois está fora da esfera do seu deus ou sistema de crenças. É nessa etapa do divórcio entre o amor e o ódio que o individuo compactua com as violências sectárias e antropofágicas que a história tão bem registra. Em vez de abrandar o próprio coração com a sujeição do ego, o fanático tenta abrandar o mundo. As leis da Cidade de Deus só servem para seu grupo, tribo, nação, igreja, classe, ao passo que o fogo de uma perpétua guerra santa é mantido aceso, enquanto sua boa consciência lhe garante estar em um serviço piedoso contra todos os povos "não-circuncisos", "bárbaros","nativos", "primitivos", ou outros que venham a ocupar a posição de vizinhos.        
         
No Japão, o sucesso de sua sociedade agrícola, e sua conseqüente expansão militar contra povos   mais fracos determinou um grande culto à morte de seus chefes e monarcas que com suas conquistas se tornaram poderosos. Gastavam verdadeiras fortunas na construção de grandes mausoléus para depositar seus restos mortais. Essas obras exigiram milhares de escravos e artífices. O poder se afirmava na pompa do túmulo. Mas a despesa mais significativa não foi sempre a da vida humana sacrificada? Os chefes de clã não gostavam de jazer a sós na terra úmida. Para sua glória deviam seguir acompanhados para o outro mundo. Na morte de uma autoridade – deviam seus parentes segui-lo; eles eram estrangulados e enterrados para lhe servirem de escolta. Os sacrifícios humanos propiciados aos deuses do mar, do solo, do rio, das chuvas que só eram reclamados esporadicamente, tinham assim se tornado regulares por ocasião da morte de um poderoso senhor. Muitas das antigas civilizações conheceram estes mesmos costumes: para servir e honrar os senhores no outro mundo imolava-se os seus servidores. Há cinco mil anos, em Ur na Caldéia, as vítimas desciam ao túmulo real e alí tomavam veneno. Heródoto relata que, entre os Citas, enterravam-se da mesma forma, as concubinas do rei junto com seu senhor. Na Índia, o costume denominado satí, que significa “mulher fiel”, a viúva é imolada na fogueira funerária junto ao esposo defunto, e só foi coibido no século XIX pelas autoridades inglesas, mas ainda hoje persiste de forma ilegal no interior. Entre os manchús são relatados sacrifícios pela morte de um príncipe até o século XVII. Costume desaprovado por Confúncio muito tempo antes.

Com o arrefecimento desses hábitos de sangue foram criados os simulacros, estátuas de pessoas e animais que passaram a ser enterrados junto aos nobres defuntos, como símbolo do antigo hábito funerário. Entretanto os sentimentos que uniam o senhor e seus vassalos poderia ser tão intenso a ponto que a existência depois da sua morte pareceria vã e intolerável. Neste entendimento não poderia servir numa só vida a mais de um senhor. O apego de homem para homem muitas vezes forjado na vida de companheirismo militar, nos combates e campanhas intermináveis no Japão aprovava o ritual de acompanhamento ao morto denominado “junshi”, quando o soldado seguia na morte seu senhor. Este costume não é restrito aos nipônicos. Julio Cesar já assinalava este costume entre os gauleses que prometiam seguir seu chefe na morte, eles se comprometiam a não sobreviver a ele. O “junshi”, chamado “oibara” quando ocorre o suicídio por incisão no ventre, é uma instituição japonesa, mas os sentimentos que motivam o ato são encontrados em todas as partes: em Crônicas I, versículo X, o escudeiro do rei Saul lança-se sobre sua espada ao saber da morte de seu senhor. Eros, servidor de Antonio, tornou-lhe a morte mais fácil, nos conta Plutarco, matando-se diante de seus olhos. Por ocasião da morte de Othon, muitos de seus soldados seguiram com ele, matando-se para demonstrar sua “grande afeição” nos conta Tácito. Na China era construído um arco de triunfo para celebrar o suicídio da viúva, considerado suprema glória. Essas homenagens só foram proibidas na China no ano de 1729 por um edito imperial



Simulacro Fúnebre


Como era gostoso o meu francês –

São constantes as raízes antropofágicas como condição humana em todo o globo terrestre. Alguns antropólogos definiram tais comportamentos e estudaram suas práticas de forma fragmentária e não conclusiva gerando uma disputa infindável entre darwinistas e humanistas, uns e outros buscando sobrepor suas teorias como olhassem uma vitrine que separa sua observação de uma tomada de posição mais abrangente e libertadora de velhos dogmas racionalistas através da sua aceitação e mudança de paradigmas como num processo psicanalítico mais abrangente de toda a humanidade e não só o estudo de grupos exóticos esparsos numa visão reducionista.

Freud comparou o comportamento de nossos antepassados “selvagens” e seu comportamento ainda presente em sociedades mais primitivas com o comportamento de pessoas acometidas de neurose. Podemos deduzir que em larga medida vivemos em uma sociedade neurótica que finge adotar princípios morais e religiosos cristãos, mas na verdade no seu cotidiano estão mergulhados em seus costumes pagãos que só são abominados em tese. Falta autocrítica na sociedade e eficiência em suas instituições tanto sagradas quanto profanas por causa desta doença coletiva.

Criação e destruição são opostos que se complementam nas várias crenças que percorrem as civilizações do planeta. Na verdade nestas crenças matador, sacrificador e vitima, estão de acordo, nos bastidores, onde não ocorre a polaridade de opostos, mas são inimigos mortais em cena, onde a guerra infindável dos deuses e dos titãs tem curso influenciando e decidindo os atos humanos.

Reconhece o algoz que o sacrifício e o esquartejamento da vitima são atos de crueldade extrema, e até de traição da condição humana, o pecado original dos deuses, do qual todos os homens participam. Assim uma parte do ser é o prolífico, a outra o devorador que clama pelo sacrifício de seus semelhantes. Um sacrifício, no seu sentido mais abstrato, isto é, como uma comemoração do primeiro ato de crueldade pelo qual a morte entrou na matéria dividindo o infindável jogo dos elementos de tal maneira a trazer, paradoxalmente, a vida ao mundo numa sucessão constante e absoluta.

Para os tupinambás o mundo foi criado por um velho entediado com a monotonia do Universo. Esculpiu os homens em troncos e criou um lugar mágico, uma terra na qual os alimentos brotavam sem que se precisassem ser plantados, flechas caçavam sózinhas e não havia morte. A imprudência do homem fez o ancião provocar um dilúvio, e os que sobraram se esqueceram do caminho da terra sem mal. Para chegar lá, Maíra, inimigo de Sumé, ensinou o desejo de vingança contra os descendentes de Sumé. Como onças, os tupinambás deveriam matar e comer o maior número de inimigos.   

Os rivais como afirma Francis Huxley, “estão sempre em oposição, o significado da palavra: “as barrancas do rio” como lados opostos que usufruem do fluxo de energia de cada lado, como competidores pelos recursos naturais da corrente da vida. Segundo a concepção  dos Tupis em relação a criação do mundo: "São as nações todas umas diferentes das outras. Existem os chamados tapuités, isto é, homens para comer. E dizem os tupiniquins que foram os mesmos feitos com tições de fogo, por um dos seus deuses civilizadores, para o fim de servirem de presa e passatempo aos primeiros, ou lhes servirem para os seus exercícios bélicos". ( Thevet - Manuscritos )  

Nesta forma o canibalismo ritual conhecido entre os Tupis no Brasil, que utilizam a mesma palavra para designar “cunhado” para “inimigo”. Esta palavra: tabajara, que literalmente quer dizer “o dono da cara”, aquele que enfrenta. Tal expressão significa que os rivais faziam guerras entre sí e despousavam as mulheres uns dos outros, de modo que a corrente que os separava era a corrente que os unia, segundo Huxley. Suas raízes motivadoras seriam a vingança contra o intruso pela perda da mulher na família tribal, a negação do sexo aos irmãos e outros familiares homens. A vingança é uma das molas mestras da sociedade Tupi, equilibrada segundo os viajantes da época, com um grande sentido de harmonia familiar. Os tuxauas andavam pela taba toda manhã pregando o afeto pelas esposas e a vingança contra os inimigos. Mas podiam ocorrer vinganças dentro do âmbito familiar da aldeia, pois ao homem era dado o direito, e era seu dever sagrado vingar uma injúria recebida, mesmo sobre algo ocorrido por acidente, ou causado pelo maior amigo. Se tal não ocorria pois seu rival fosse muito poderoso, rolaria no chão engolindo terra por frustração. O gesto primal de esmagar entre os dentes o piolho que importuna para fazer pagar sangue por sangue era natural entre eles. Crianças de peito desde pequenas bebiam do sangue dos inimigos que suas mães lhes davam na ponta do seio sem pudor.

A vingança criava todo um código de honra a que os homens eram submetidos. Um homem não podia casar enquanto não tivesse matado um inimigo ou executado um prisioneiro. Só a bravura na guerra trazia imortalidade após a morte, incluindo as batalhas espirituais de seus xamãs ou morrendo em terra estranha, vitima das execuções rituais que precediam os festins canibais.

Para fazer prisioneiros organizavam uma expedição composta de homens de várias tribos e após a colheita saiam em campanha com suas canoas viajando centenas de quilometros para fazer suas presas nos aldeamentos inimigos; para dominar o oponente bastava um tocar ao seu ombro e gritar: “voce é meu prisioneiro” e neste jogo ritual mortal tal era o sentido de honra que o prisioneiro se deixava amarrar e conduzir pelo captor em total sintonia de cultura.

Hans Staden relata sua experiência como prisioneiro entre os tupinambás: “na mesma noite (o tuxaua Cunhambebe) ordenou que todos trouxessem seus prisioneiros para um descampado em frente à floresta, à beira da água. O que foi feito. Os selvagens reuniram-se e formaram um grande cerco dentro do qual ficaram os prisioneiros. Estes tiveram de cantar todos juntos e agitar os ídolos, os maracás. Em seguida um após o outro falou destemidamente dizendo: “Sim, nós saímos, como fazem os homens corajosos, para capturá-los e comê-los, a voces nossos inimigos. Mas voces foram mais fortes e nos capturaram. Não pedimos nada. Os combatentes valorosos morrem nas terras de seus inimigos. E nossa terra ainda é grande. Os nossos ainda se vingarão em voces.” Então os outros responderam:”Voces já eliminaram muitos dos nossos. Queremos vingá-los em voces”. Quando terminaram essas falas, cada um levou seu prisioneiro para seu abrigo”.

Era o comportamento de caçadores com suas presas. Caso tivessem abatido algum ferido assavam e comiam os melhores pedaços pois tinham direito a primeira escolha como manda a tradição, não havia nada de sacramental nisto. Os prisioneiros eram levados para a aldeia onde eram recebidos por uma horda de mulheres aos gritos, às quais era obrigado a dizer: “Eu comida de vocês, cheguei”.

Segundo Hans Staden testemunha dos rituais relata: “Quando trazem para casa um inimigo, os primeiros a bater nele são as mulheres e as crianças. Depois colam nele penas cinzas, raspam-lhe as sobrancelhas, dançam em volta dele e atam-no direito, de forma a não poder fugir. Depois dão-lhe uma mulher, que o alimenta e também se entretêm com ele. Se ela recebe um filho dele criam-no até que fique grande e depois, quando lhes vem a mente matam-no”.

Alimentam bem o prisioneiro. Mantem-no assim durante algum tempo e preparam-se para a festa. Nessa ocasião produzem uma boa quantidade de vasos nos quais colocam sua bebida e queimam também recipientes especiais para as coisas com as quais o pintam e enfeitam. Confeccionam ainda, ramos de penas e os amarram à maça com a qual o matam. Fazem também uma grande corda, que chamam de muçurana. Com esta corda amarram-no antes de matá-lo”.

“Ao juntarem todas as coisas, decidem o momento em que o prisioneiro deverá morrer e convidam os selvagens de outras aldeias para que os visitem. Enchem, então, todos os vasos de bebida. Um ou dois dias antes de as mulheres prepararem as bebidas, levam o prisioneiro uma ou duas vezes ao descampado entre as cabanas e dançam em torno dele”.

“Assim que todos os que vieram de fora estiverem reunidos, o chefe da cabana lhes dá as boa vindas e diz:”Agora venham e ajudem a comer o vosso inimigo”. Um dia antes de começarem a beber, amarram a muçurana ao redor do pescoço dele e pintam a ibira-pema com a qual o matarão. Ela tem mais de uma braça de comprimento. Os selvagens untam-na com um material colante. Depois pegam cascas de ovo de cor cinza e pertencentes a uma ave chamada macaguá; raspam-nas até virarem pó e passam este na maça. A seguir uma mulher se senta e desenha algo no pó de casca de ovo que foi aplicado. Enquanto ela pinta muitas mulheres ficam em volta e cantam. Quando finalmente a Ibira-pema está decorada com ramos de penas e outras coisas, então ela é pendurada num travessão dentro de uma cabana desocupada. Os selvagens, então, passam a noite inteira cantando em torno da maça. Da mesma forma pintam o rosto do prisioneiro. Os demais continuam a cantar mesmo quando a mulher está o pintando”.

“Quando começam a beber, fazem vir o prisioneiro. Este tem de beber com os selvagens. Eles conversam com ele. Quando terminam de beber, descansam no dia seguinte e constroem para o prisioneiro uma pequena barraca no lugar onde deverá morrer. Este passa a noite deitado nela, sob severa vigilância”.

“De madrugada, bem antes do amanhecer, eles vem e dançam e cantam ao redor da maça com a qual deverão matá-lo até o raiar do dia. Tiram então o prisioneiro da barraca, desmontam-na e abrem uma clareira. Soltam a muçurana de seu pescoço e passam-na em volta do corpo e depois puxam-na com força dos dois lados. Ele agora fica amarrado no centro. Muitas pessoas puxam de ambos os lados. Deixam-no assim por algum tempo e põem a frente dele pequenas pedras, para que possa atirá-las contras as mulheres que andam em torno dele, e lhe dizem de forma ameaçadora, como querem comê-lo. As mulheres estão pintadas e, depois dele ter sido esquartejado, devem andar em volta das cabanas com os quatro primeiros pedaços. Isso para grande regozijo dos remanescentes”.

“Agora fazem uma fogueira, a uma distancia de cerca de dois passos do escravo, para que ele seja forçado a ver sua mulher, que vem correndo com a maça, a ipira-pema, ergue os ramos de penas, grita de contentamento e passa em frente do prisioneiro, para que a veja. Neste momento um homem pega a maça, põe-se em frente ao prisioneiro e a mostra, de forma a que tenha que vê-la. Neste entretempo, aquele que deverá matá-lo afasta-se com outros treze ou quatorze, e pintam o corpo com cinzas. Quando ele volta com os outros algozes para a clareira onde está o prisioneiro, aquele que está a frente do prisioneiro entrega-lhe a maça, e o chefe da cabana chega, pega a maça e passa-a uma vez entre as pernas dele. Isso para eles, constitui uma honra. A seguir, aquele que o matará volta a pegar a maça e diz:”Sim, estou aqui, quero matá-lo porque sua gente também matou e comeu muitos dos nossos”. O prisioneiro lhe responde: “Tenho muitos amigos que saberão me vingar quando eu morrer”. Nisto o algoz golpeia o prisioneiro na nuca, de forma que lhe jorre o cérebro. Imediatamente as mulheres pegam o morto, arrastam-no para cima da fogueira, arrancam toda a sua pele, deixam-no inteiramente branco e tapam seu traseiro para que nada lhe escape”.

Thevet relata o que presenciou entre os tupinambás: "Algumas vezes o matador começava por assestar golpes nos flancos da vítima, de modo a derrubá-la; se o prisioneiro conseguia ainda a se manter de pé, os índios procuravam erguê-lo. E o jôgo prosseguia até a exaustão do prisioneiro. Antes do golpe final, o vencedor passava, duas vezes, por diante do prisioneiro".

"Mal o mísero era massacrado, velhas mulheres precipitavam-se para recolher-lhe, em uma cuia, o sangue e os miolos; o sangue era então bebido ainda quente. A mulher dada ao prisioneiro, nessa ocasião aproximava-se do morto e vertia algumas lágrimas. O choro era puramente ritual, pois em breve a mulher já não demonstrava nenhum pesar e era até a primeira a saborear a carne do esposo".      

"O cadaver era então assado e, como se faz com os porcos, escaldado a ponto de permitir a raspagem do couro. Em seguida, como também afirma Staden,  introduzia-se no ânus um bastão destinado a impedir a excreção".  

“Hans Staden relata: Depois que a pele foi limpa, um homem o segura e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços rente ao tronco. Aproximam-se então as quatro mulheres, pegam os quatro pedaços, andam ao redor das cabanas e fazem uma grande gritaria de contentamento. A seguir separam as costas junto com o traseiro da parte dianteira. Dividem tudo entre si. As vísceras ficam com as mulheres. Fervem-nas, e com o caldo fazem uma massa fina chamada mingau que elas e as crianças sorvem. As mulheres comem as vísceras, da mesma forma que a carne da cabeça. O cérebro, a lingua e o que mais as crianças puderem apreciar, elas comem. Quando tudo tiver sido dividido, voltam para casa, e cada um leva seu pedaço”.

E Thevet confirma: "Os quartos eram assados ao moquém e os cuidados culinários entregues às velhas mulheres que demonstravam seu prazer por uma agitação frenética. Se pudessem se embriagar de carne humana, de bom grado o fariam. Até a gordura que escorria pelos varais do moquém lambiam as velhas, exclamando repetidamente, com júbilo, Ygatou, 'é bom'. Algumas mesmo chegavam a ponto de lambuzar o rosto, a boca e as mãos com as banhas do morto. bebendo todo o sangue que se podia recolher. Nada era perdido: os homens coziam as entranhas, devorando-as; as mulheres lambiam o caldo. Linguas, miolos e certas partes do corpo estavam reservadas aos jovens; para os adultos ficava a pele do crânio e para as mulheres os orgãos sexuais. Porções havia consideradas nobres; eram dadas aos hóspedes de honra, que as moqueavam e levavam consigo".      

“Aquele que matou o prisioneiro atribui-se mais um nome, e o chefe da cabana lhe faz uma incisão com o dente de um animal selvagem na parte superior dos braços. Quando a ferida está curada, veem-se as cicatrizes, e elas tem o valor de uma honrosa ornamentação. Durante estes dias o homem fica deitado na rede. Dão-lhe um pequeno arco com uma flecha, com o que deve passar o tempo, e ele atira sobre um alvo de cera. Isso ocorre para que os braços não lhe fiquem trêmulos por causa do espanto com o golpe mortal”.

O prisioneiro dava assim satisfação à honra alimentando seus inimigos com sua própria carne e embora seu corpo seja imolado, o ato sacrificial faz dele um herói. Mas antes de sua execução ele é transformado em amigo. É adotado pela tribo, recebendo uma mulher, irmã ou esposa de alguém que tenha morrido na guerra, e praticam rituais que fazem dele substituto do falecido. O nome para prisioneiro era “miaussuba”, que significa: “o bem amado”. Segundo se conta, raramente os prisioneiros tentavam fugir, não só porque sua morte resultaria em imortalidade, mas caso retornassem a sua aldeia seriam motivo de chacota pelos seus parentes, primeiro por sua covardia, depois por sua falta de confiança de que suas mortes seriam vingadas pela tribo. Tinham quebrado o ciclo da vingança e assim atentado contra a “razão de ser” da vida tupi.

O prisioneiro era amado pelas mulheres que eram designadas ou escolhiam dormir com ele, sendo o maior prazer e honra para elas. Mas esse amor tinha termo no momento que a execução se aproximava, quando ele era exibido novamente como cativo, escarnecido pelas mulheres. Davam-lhe o direito de atirar pequenas pedras e frutas duras em seus algozes e, por fim, instavam para que fugisse. Esses rituais indicavam seu retorno à condição de prisioneiro e inimigo e o fim de sua adoção pela tribo.

A prática tupi mostra que a troca começava entre dois grupos humanos diferentes, cada um se julgando ser humano em relação ao outro grupo rival, que poderia ser considerado como uma provisão constante de “cunhados”, na condição quase divina de heróis a serem imolados para a tribo. No caso destes indígenas é assegurado que o ciclo de vingança continuará, e também o ciclo de iniciação para os guerreiros mais moços que matam ou executam seus inimigos, ficando assim aptos para casar, comportamento incentivado como sentido de honra e status na comunidade tribal. Idéias relacionadas a um ritual de fertilidade não podem ser esquecidas, como arquétipo universal encontrado em várias culturas do planeta.

Sua adoção na aldeia o fazia “substituto” do que fora morto antes e que era vingado, sendo ou não responsável direto pela morte a ser vingada, já que sua culpa residia em fazer parte daquele grupo dos “inimigos” dos “outros”. O carrasco após a sua morte assumia o nome da vítima e incorporava literalmente os atributos do imolado.

Ao convidar seus vizinhos para as comilanças afirmavam seus pactos e alianças comendo a vítima, para dividir a culpa e a honra da execução ritual. Até hoje tais costumes amenizados pelo sacrificio de animais como porcos, perus e pescados tão comuns entre os povos da terra que associam seus banquetes comunitários e familiares em rituais sagrados de fertilidade e comunhão espiritual para marcar seus ciclos de existência.

O executor era isolado pelo fato de ter morto o “bem amado” e não ficava com parte alguma do festim que era dividido pelos outros. Aparentemente ele se recobrava do forte impacto de haver executado seu oponente e assim concluía um ritual de passagem particular reafirmando sua condição de guerreiro. Assim tanto o prisioneiro como o carrasco atingem sua imortalidade. O que partiu para o Céu leva consigo o que ficou, razão de sua reclusão temporária depois do ato.

Os povos Tupis embora tenham desenvolvido a prática do canibalismo de um modo muito complexo, seu fundamento básico era a vingança pela morte de um companheiro de aldeamento cuja alma de outro modo ficaria para assombrar seus familiares, acrescido de um sentimento de honra tal que só aqueles que matavam um inimigo ou eram por sua vez aprisionados, mortos e comidos podiam esperar a vida eterna e o paraíso. Razão de evitarem fugir ao seu destino e assim caírem em opróbrio junto aos seus ao comprometer a chance da própria imortalidade. Existe uma relação direta a idéia de um rei ungido que sabe o que espera. Era executado numa época do ano em que a comida era abundante e, portanto resultava sua morte uma relação direta com a fartura de alimentos. Sua figura era associada ao herói primordial que tinha trazido os conhecimentos costumes e a cultura no passado, mas sua morte marcava a eterna vingança sacrificial e servia para manter acesa a rivalidade das tribos.

“Mata-me, logo meus parentes te matarão: come meu corpo, e estará comendo teus próprios parentes que eu comi”. Estas eram as palavras de zombaria que o prisioneiro tupi exprimia nos seus ultimos momentos antes do golpe fatal. Após a morte glorificada sua alma seguia para a eternidade junto ao deus Sol.

De forma análoga, para algumas tribos da América do Sul a caça de cabeças possuía uma carga intensa de rituais e sobrenaturalidade. Entre os Jívaros do Equador que mantiveram seus costumes até a década de 60, existia um grupo de guerreiros temidos por serem grandes matadores que possuíam direito restrito para cometer este tipo de canibalismo sagrado. No pensamento deste povo matar e colecionar cabeças dos inimigos estava intimamente ligado a posse de dois tipos de almas, as Arutam e as Muisak, quem detinha as primeiras podia participar das expedições de caça de cabeças e quem tinha as segundas estavam aptos a vingar a morte de quem as possuía. Mas quando se reduzia a cabeça da vítima sua alma Muisak era aprisionada irremediavelmente a ela e ficava incapaz de escapar. Assim tambem era costume em outras regiões como por exemplo entre os mundurucus, caçadores de cabeças da Amazônia central, o guerreiro que tinha conseguido uma cabeça, tinha o privilégio de convocar uma festa que podia demorar por três estações de chuva sucessivas. Tal festa, completamente centralizada no tratamento da cabeça, tem grande importância pelas normas que, por toda a duração, regulavam a vida do caçador de cabeças e a de sua mulher. Durante todo aquele tempo eles não podiam ter relações sexuais e ele não podia, também, participar das refeições comuns, das conversas (a não ser a respeito de argumentos particularmente sérios). Além disso, participava de forma especial das empresas coletivas de caça: só presenciando (não podia caçar), junto a seu o próprio "troféu" – que servia para assegurar o sucesso da empresa –, devendo retirar-se para sua casa depois dos primeiros animais terem sido abatidos. Naquela temporada também sua esposa assumia um poder particular, podendo mandar em todas as outras mulheres e sendo preservada de qualquer trabalho (Brelich, 1966: 102-3). A respeito dessa analogia (que havíamos anteriormente relevado), recentemente lemos um trabalho que confirma nossa análise. Nele se destaca que "o estatuto da cabeça enfeitada [entre os mundurucus] lembra o do cativo tupinambá; a relação entre o matador e o troféu evoca também o par matador/vítima entre aqueles Tupi quinhentistas. A situação do matador [...] apresenta mais um paralelo com o matador tupinambá na hora do festim final: ele é submetido a uma rigorosa abstinência sexual. Os dois outros resguardos típicos da couvade também se verificam: proibição de caçar (para o matador) e cozinhar (para sua esposa)" (Menget, 1993: 315). Observe-se, aqui de passagem, a correlação, de que já falamos, entre sexo, caça e cozinha. Sempre em relação à condição, culturalmente estabelecida do capturador, trata-se, com efeito, da mesma "liminalidade", isto é, está morto, momentaneamente sem nome, a espera da renomeação, ritual em estreita identificação entre vítima e capturador que também encontramos, por exemplo, na prática ritual-sacrificial asteca onde o banquete, com as carnes da vítima, era ritualmente oferecido pelo capturador que, igualmente neste caso, não participava da refeição canibalesca. Esse fato podia eventualmente se configurar como um verdadeiro e próprio incesto. "A identificação entre capturador e vítima é destacada por vários fatos, entre os quais: na fórmula da captura, o vencedor se declarava 'pai' do vencido; o capturador não participava da refeição canibalesca ('deveria comer a mim mesmo?', perguntava); o capturador era pranteado, como se fosse ele mesmo a dever morrer, e ornado dos paramentos próprios da vítima" (Brelich, 1966: 252-53)


Cabeça Jívaro

Da mesma forma os Pawnee buscavam capturar uma bela donzela inimiga em cada um dos seus ataques. Essa moça então era adotada por alguma família Pawnee com mimos maiores aos dedicados aos próprios filhos na tenda. Ela se tornava a queridinha e era tratada com deferência por todos. Ao final de uma determinada noite, era agarrada rudemente, despida, e a metade de seu corpo, da cabeça aos pés, era pintada com carvão. Ela simbolizava assim a junção do dia com a noite. Era então amarrada entre dois postes. Seu pai adotivo era então obrigado a flechá-la no coração no momento que a estrela d’alva estava surgindo no horizonte. Seguiam-se as flechas dos sacerdotes e o corpo dela era horrivelmente estraçalhado antes de servir ao seu objetivo. Este rito dos Pawnees de aplacamento à estrela d’alva estava relacionado ao sucesso nas suas guerras e na agricultura em particular.

Sobre processos antropofágicos no Novo Mundo Voltaire comenta em seu Dicionário Filosófico: “Em 1775 trouxeram quatro selvagens do Missisipi para Fontainbleau; tive a honra de conversar com eles; havia entre eles uma mulher do país, a quem perguntei se havia comido gente; ela me respondeu muito singelamente que sim. Devo ter ficado um pouco escandalizado; ela se desculpou dizendo que era preferível comer o inimigo morto a deixá-lo ser devorado pelos animais e que os vencedores mereciam a preferência. E então ironicamente o sábio concluí: “Nós, em batalha campal ou não, matamos nossos vizinhos e pela mais vil das recompensas trabalhamos para a cozinha dos corvos e dos vermes. Aí é que está o horror, aí é que está o crime. Que importa, depois de morto, ser comido por um soldado, por um corvo ou por um cão?”

Sacrificio Asteca
Os astecas que possuiam um calendário bem definido e uma civilização próspera até a chegada dos europeus assim como os tupis, aprisionavam seus inimigos e acreditavam que aqueles que vão para o Céu são os que morrem na guerra e os cativos mortos nos sacrificios em poder do inimigo. Sua morte era entendida como um renascimento. Existem outra semelhanças que sugerem uma ligação entre as duas culturas. Os tupis opunham Jaguar e Falcão, um representando a vítima e o outro o carrasco respectivamente. Os astecas desenvolveram o simbolismo de forma semelhante confrontando a vítima com quatro guerreiros das classes da Águia e do Jaguar. Seus sacrificios humanos serviam dentro do seu sistema de crenças para manter a órbita celeste do Sol regular e através dos sacrificios evitar que o solstício de inverno fosse prejudicado mantendo assim a ordem cósmica oferecendo ao deus solar o coração pulsante dos cativos. Ao fim de um ciclo de 52 anos quando coincidiam os movimentos do Sol e do planeta Venus, um fogo era aceso no peito da vítima, cujo coração era arrancado enquanto certas partes eram devoradas pelos sacerdotes. Neste caso é o Sol o Grande Canibal, ele é Cronos, é Kala, o tempo devorador de mundos e gentes.

Eram um povo militarista e conquistador, guerreiros temíveis que entre os séculos XIII e XVI dominaram o vale central do México e desenvolveram as estruturas de uma civilização complexa e rica sem igual na região. Suas cidades usurparam dos toltecas, povo mais desenvolvido que vivia na região, como também copiaram sem pudor, em parte, a religião, a arte e a tecnologia dos vencidos. Os toltecas lhes proporcionaram conhecimentos acumulados nos séculos de evolução de sua civilização, um grandioso conjunto de cidades, templos, religião sacerdotal, contagem astronômica do tempo, escrita hieroglífica, irrigação, agricultura desenvolvida. Todas estas benesses os astecas adaptaram para seus fins de dominação.

A missão da nação asteca era a Guerra, seu deus da guerra Huitzilopochtli proclamava: “Cumpre-me vigiar todas as nações e disputar com elas: e isso sem muita contemplação”. “Os quatro cantos do mundo nós conquistaremos, venceremos, e subjugaremos...o que vos custará trabalho, suor e puro sangue”. Suas crenças religiosas determinaram e limitaram suas formas de luta onde conseguir prisioneiros era o objetivo mais importante e impuseram grandes obstáculos aos seus guerreiros ao confrontarem-se com adversários mais cruéis que possuíam estratégias mais eficientes da guerra total.

Sua história principia quando entram no vale central do México em busca de subsistência. Ao prestarem serviço como guerreiros de outro povo, os tepanecas, uma das três potências do vale, e buscarem refúgio em uma das ilhas do lago Texcoco, aos poucos se estabeleceram como potência e centro de convergência de poder na região. Os que aceitaram sua supremacia foram assimilados ao seu império; os que resistiram tiveram que lutar. Seus exércitos eram extremamente organizados e supridos pela complexa organização burocrática criada por eles. Sua divisão tradicional era de 8 mil homens que podiam marchar em rotas paralelas nas excelentes estradas do império a velocidade de 7,5 Km por dia, levando rações para oito dias de campanha.

Suas batalhas rituais consistiam em várias demonstrações de força e valentia militar nas quais números iguais de guerreiros de ambos os lados se enfrentavam em combates singulares corpo a corpo para exibir-se. Se isso não bastasse para intimidar um dos lados, levando-os a rendição, a disputa crescia em ferocidade e violência, com mais contingentes e no uso de armas como arcos e flechas. Numericamente superiores a seus adversários os astecas estavam destinados a vitória neste tipo de batalha de atrito e sua manobra de expansão e envolvimento era eficiente, enquanto seus oponentes eram gradualmente cercados até que, sufocados e sem apoio externo fossem finalmente derrotados.

Sua complexa estrutura social baseada em status colocava na posição inferior os escravos, que ocupavam o mais baixo nível social deste sistema econômico, depois os plebeus, os agricultores, os artesões e comerciantes do campo e da cidade, seguiam-se os nobres, depois os sacerdotes e por ultimo o monarca. Todos os nascidos do sexo masculino eram guerreiros em potencial e podiam chegar ao status de alto guerreiro desde que passasse pelas escolas marciais onde realizavam o treinamento em seus distritos da cidade, calpulli, que eram um misto de clube, mosteiro e local de reunião das corporações. Uns poucos se tornavam sacerdotes, a maioria preferia a vida secular, mantendo a obrigação de lutar como guerreiro enquanto seus nobres senhores continuavam as tradições familiares de domínio e o monarca era escolhido entre os guerreiros da casta mais elevada.

Porém ele não era apenas um guerreiro, nem um sacerdote, embora fosse cercado pela liturgia do poder sagrado que controlava sua rotina diária. Era considerado até certo ponto como com poderes divinos, seguindo a tradição dos reis sagrados, era visto como em possessão dos deuses. Seu nome era exaltado pelos súditos como: “Nosso senhor, nosso executor, nosso inimigo”. Seus deuses exigiam o sacrificio sangrento de crianças compradas e escravos capturados nas guerras, sempre insuficientes para aplacar a fome divina, vitimas que eram executadas em sua presença no altar sagrado. Assim mantinham o ritmo das revoluções diárias do sol e a rotina do povo para levar suas vidas comuns em graça divina.

A batalha campal dos astecas era travada a curta distância. Pareceria estranha para os povos europeus da época dos descobrimentos acostumados com as matanças indiscriminadas do conflito total e o conceito de batalha decisiva europeu. Sua natureza ritualizada era aceita por ambas as partes no campo. Seus armamentos, pois desconheciam o uso do ferro ou o bronze, consistiam no arco e flecha, lanças e o atlatl, uma azagaia, tipo de alavanca que aumenta o alcance e a força das lanças de atirar. Sua arma de ataque direto era uma espada de madeira, guarnecida no fio por lascas de obsidiana ou laminas de silex, destinadas a ferir mais que matar. Os guerreiros usavam protetores de algodão alcochoado a guisa de “armaduras” que davam relativa proteção contra as flechas inimigas sendo mais apropriados ao calor do país. Levavam pequenos escudos redondos e o objetivo do guerreiro era acercar-se do oponente e acertar um golpe nas suas pernas que o tirasse de combate.

Sua formação de combate era composta na linha frontal de noviços, organizados para a luta em grupo e para fazer prisioneiros. Os superiores mantinham a linha até que fosse necessário ceder posição a intervenção de guerreiros mais experientes, que eram hierarquizados e organizados pelo números de cativos que tinham feito em batalhas anteriores. Os mais qualificados, que tinham feito sete prisioneiros ou mais, lutavam em duplas, sendo esta distinção uma honra em seus costumes guerreiros, caso um morresse e seu companheiro fugisse ao combate, ele seria morto pelos companheiros. Caso um deles emprestasse um cativo para o companheiro ser promovido, ambos seriam condenados à morte. Seu desempenho em combate servia para dar exemplo de coragem aos demais. Eram denominados “furiosos” pelos astecas, sendo tolerado seu comportamento rude em tempos de paz. Os melhores eram guerreiros solitários que como os samurais japoneses e cavaleiros medievais na europa iam em busca de um adversário ideal que pudesse equiparar-se em força ou ser um pouco superior ao desafiante.

O duelo entre iguais era a maneira preferida, quando no campo de luta tentavam com golpes nas pernas do adversário cortar um tendão do jarrete, aleijar um joelho, para derrubar no chão o oponente e talvez agarrar seus cabelos para submetê-lo. Como os tupis faziam atavam com cordas os prisioneiros para levá-los a retaguarda.

Seus combates que começavam com saraivadas de flechas que eram lançadas para causar confusão nas linhas inimigas, onde duelos individuais seriam travados, acabava quase sempre com filas de cativos que eram levados para Tenochtitlán, a capital do império. Os guerreiros voltavam para suas antigas ocupações, sendo os mais destacados promovidos e os menos atuantes expulsos das respectivas escolas para trabalhar como carregador, serviço de baixo valor na escala hierárquica da sociedade asteca.

Suas batalhas comumente resultavam em milhares de cativos que eram levados para o templo na capital para serem sacrificados, onde subiam até o topo para terem seus corações arrancados pelos sacerdotes. Alguns prisioneiros ou escravos eram guardados para os quatro grandes festivais religiosos. Porém no primeiro a “Festa do Esfolamento de Homens” , Taclaxipeualiztli, mata-se um grupo seleto de vitimas utilizando suas técnicas de combate usual, já que todos, captores e cativos eram grupos homogêneos que dispunham de uma cultura e língua comum, era sabido deles o destino dos prisioneiros em suas guerras, seu objetivo era capturar guerreiros a altura de serem imolados aos seus deuses.

Um em cada quatrocentos cativos podia ser escolhido para “descascamento”. O candidato era então tratado como um convidado de honra, ilustre, cheio de atenções e adornos dados pelo seu captor e seu devotado séquito de jovens. Embora fosse quase sempre lembrado pelos captores e “escarnecido” pelo destino terrível que o esperava. Quando ocorria o festival eram levados pelos sacerdotes até uma pedra sacrifical montada sobre uma plataforma que dava visão para o público, onde ficava amarrado a uma corda e em posição levemente superior aos quatro guerreiros das ordens da Águia e do Jaguar que iriam atacá-lo. Como armamento dispunha de quatro cacetes que podia atirar e sua arma principal era uma espada de madeira com borda de penas. Em posição elevada ele girava o cacete com extrema liberdade contra seus oponentes. Os guerreiros poderiam usar suas técnicas para ferir e inutilizar as pernas da vitima, mas preferiam tornar lento o suplicio para regozijo da platéia, usando as armas aos poucos demonstrando suas técnicas guerreiras superiores e minando a energia do prisioneiros com golpes que pareciam um descascamento até que ele esgotado exangue cambaleia e cai. Ele então era morto pela abertura ritual de seu peito, de onde sacerdotes arrancavam seu coração ainda palpitante.

Seu captor que antes lhe havia chamado “filho amado” ficava observando de uma posição privilegiada o descascamento de seu cativo na pedra do altar. Assim que o corpo era decapitado para ser exposta sua cabeça no templo ele bebia seu sangue e levava o corpo para casa. Lá desmembrava-o para dividir as partes dos sacrifícios aos seus deuses particulares, esfolava a vitima e distribuía pequenas porções de sua carne servidas sobre milho para a familia fazer uma pequena refeição ritual, onde as mulheres choravam e se lamentavam clamando os filhos e maridos que seriam aprisionados e teriam igual destino na mão do inimigo. Ao final do ritual ele passava a usar a pele esfolada do morto como uma capa e emprestá-la para aqueles que acreditavam que podia dividir consigo a honra até que os retalhos de pele apodrecessem e caíssem. Tudo, todo o cerimonial tinha sido ensaiado pelo menos quatro vezes antes no templo, inclusive a retirada do coração. Para a vitima não restava alternativa do que tentar representar seu papel o melhor possível para ser louvado e lembrado nas canções em volta a fogueira de seus compatriotas de aldeia e como condição de obtenção de sua imortalidade que lhe obrigava a fazer o máximo nesta batalha desigual e de final mortal quase certo.

Onde quer que existisse outros povos, haviam potenciais opositores, e portanto conflitos , e o conflito era o centro de sua cultura em torno do qual sua civilização promovia um movimento giratório sangrento. O signo geométrico para esta batalha geradora era o quincunx, o emblema de seu deus Quetzacoalt, “a serpente emplumada”, fusão de ave e serpente é a própria flor da guerra dos astecas.

O papel representado por seu deus principal, Huitzilopochtli que destronou Quetzacoalt e obrigou seu exílio, como deus sol, era associado ao líder mítico que havia guiado seu povo até o México que posteriormente foi divinizado. Segundo seus mitos ele prometeu que seriam os senhores sobre todos os povos, seriam os donos do mundo conhecido e receberiam em tributo pedras preciosas penas de quetzal, coral e ouro dos povos vencidos. Os astecas se consideravam o “Povo Prometido”, conforme seu deus havia determinado. O equilíbrio das estações e a trajetória correta dos astros, tudo era regulado pelo guerreiro cósmico que exigia em troca o sangue dos prisioneiros para garantir a ordem universal. Como exemplo de sua fé nestas práticas cruéis só de uma vez o imperador Ahuitzotl consagrou ao deus do templo maior em Tenochtitlan em 1486, 60.000 vitimas para marcar o caráter sagrado da ocasião.

Eles se acreditavam herdeiros dos toltecas, lendários fundadores das cidades no vale central do México, os quais pretendiam repetir em sua glória passada e reviver o esplendor de antes. Seu sistema de crenças os obrigava a uma eterna divida com seus deuses que precisavam ser aplacados com todo o tipo de sacrifícios, inclusive os humanos. Acreditavam-se superiores aos seus vizinhos e reinvidicavam a supremacia tolteca, onde impunham seu sistema de crenças aos povos conquistados e que falavam a mesma língua e tinham valores semelhantes. Seus prisioneiros eram co-participantes em seus rituais de morte e seus armamentos de combate visavam mais ferir do que matar seus inimigos para facilitar seu aprisionamento. Sua opulência como sociedade pôde garantir o desperdício de matar milhares de pessoas em vez de utilizar sua mão de obra para acumular riquezas como pensariam os cientistas sociais contemporâneos.

Os maias, outra civilização mesoamericana anterior, possuíam monumentos em escala e qualidade superior ao da arquitetura asteca, tinham costume diverso de tratar os povos vencidos. Só sacrificavam os prisioneiros nobres e escravizavam os demais que eram postos a trabalhar ou vendidos. Os estudiosos consideram tal comportamento superior ao dos astecas, pois mais se assemelha ao pensamento de outros povos marciais europeus, para os quais fazer escravos era uma recompensa importante da guerra e muitas vezes sua motivação principal. Assim pretendem ser a escravidão mais humana que o sacrifício humano e esquecem que os dois sistemas emergiram da mesma raiz antropofágica dos primórdios da humanidade.

Esta é a razão por que muitos especialistas militares consideram os astecas abaixo da linha do horizonte da guerra, pois não tinham interesses maiores que a prisão de vitimas para seus sacrifícios. Mas sua imensa riqueza acumulada como foi “descoberta” posteriormente pelos espanhóis demonstra que não só exploravam materialmente seus súditos com pesados tributos aos povos vencidos mas exigiam carne humana como parte do pagamento para satisfazer seus deuses. Seu estilo ritual de guerrear só foi possível graças a superioridade guerreira e crueldade de seu povo que nos primeiros tempos deve ter simplesmente exterminado os inimigos sem dó e devorado os vencidos em festins canibalescos, rituais que aos poucos foram sendo estilizados e ritualizados passando a fazer parte do seu sistema de crenças.

Ao observarmos este corte lateral, esta vivissecação dos hábitos e costumes e seu sistema de crenças que nossos antepassados primitivos instrumentalizavam para a caça e demarcação de territórios, alimentação e fertilidade, podemos considerar similares aos seus costumes e motivações; tupis no Brasil do séc. XVI, ou astecas no México, aos homens primitivos que igualmente lutavam por sua sobrevivência nos primeiros tempos da humanidade atravessando com seus bandos montanhas e planícies, os relatos clássicos e mitológicos servem como um palco do passado onde personagens atuam e servem de ilustração ao nosso estudo etiológico, onde buscamos as raízes da guerra, suas causas e origens, enquanto arquétipo humano e suas motivações primordiais que ainda hoje definem comportamentos de agressores e agredidos em todo o planeta onde ocorrem pequenos e grandes conflitos.

A antropofagia é uma extensão do hábito da caça, mas diferente do que se imagina os caçadores não buscam o alimento para seus familiares, mas estão evitando a concorrência no seu habitat, as guerras entre caçadores não ocorriam por posse da terra. Caso desocupassem uma tribo inimiga não se apropriavam de seu território pois não tinham noção de posse. Sua única motivação era a vingança ancestral que deveria ser consumada e o eterno ato de guerra pela rivalidade no seu sentido mais ancestral que é a oposição das barrancas do rio. É a união dos opostos onde a comunhão da carne cumpre sua função fertilizadora da relação do aprisionado com a mulher a ele ligada pela tribo captora e depois por puro sentimento de dever ele consuma definitivamente sua assimilação ao totem da tribo através de seu sacrifício e devoramento. É um ato sagrado entre os guerreiros primitivos e ainda hoje podemos encontrar presentes estes resquícios nas motivações da propaganda ao público entre as nações do mundo que exploram tais expedientes “sagrados” para através do sentimento de dever a ser cumprido e da ideologia política ou religiosa arregimentar e treinar seus cadetes para vencer as forças inimigas, sempre demoníacas em relação aos interesses de sua nação ou crença, mas diferente de seus ancestrais primitivos devoram os territórios inimigos e tiram suas posses numa ganância sem fim de destruição e morte.

As guerras geradas por estes ciclos de vingança são guerras santas, caracterizadas por ciúme, honra e grandes façanhas. É o mesmo tipo de guerra que Herbert Spencer atribuiu à teoria darwiniana da seleção natural, que ele denominou como “a sobrevivência do mais apto”. Continua sendo até hoje a vingança a principal desculpa para os conflitos armados no mundo todo e a religião o estopim para torná-los manifestações sangrentas e de cunho antropofágico e etnocentrista. Astecas e seus dominadores espanhóis acreditavam-se povos escolhidos pelos seus respectivos deuses para empreender suas chacinas contra os demais povos que mantinham contato,  pois possuíam mandato divino, o que amenizava suas consciências contra as atrocidades que cometiam e para tanto criaram suas complexas instituições sangrentas e rituais de autos de fé.

Cristãos, judeus e muçulmanos para desculpar seus interesses geopolíticos sempre utilizaram seus dogmas religiosos para estabelecer cizânias entre eles mesmos e contra outros povos e assim xiitas, sunitas, católicos, protestantes, ortodoxos e sionistas mataram e matam até hoje milhares de inocentes em nome de sua fé e de suas ideologias mortais, todos com a certeza de estarem prestando serviços ao seu deus salvador que, aliás, conforme seus teólogos são uma única e mesma entidade. São suas semelhanças psicossociais e não as diferenças dos seus credos que estabelecem esta origem comum antropofágica. 

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